Fogo Vivo — Nova Amsterdã 01

Paulinho, apesar dos nove anos de idade e dos bracinhos magricelos, era esperto e ágil, morando na cidade grande, sempre que visitava os parentes perto do rio Potengi se sentia um aventureiro nato, mas acaba descobrindo o preço da aventura ao desrespeitar as regras da natureza

Voltado a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos. As obras serão publicadas semanalmente as terças-feiras. E para iniciar no melhor estilo, o título escolhido foi: Fogo Vivo da série Nova Amsterdã.

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O VENTO SACUDIU O PEQUENO BARCO. Era manhã de sábado e o calor estava forte como era de se esperar do final de ano naquela parte do país, mas isso não impedia os três naquele barco surrado de cor azul e vermelha de irem rio acima em direção aos manguezais. A renda da família não se resumia apenas à captura de caranguejos, mas também no plantio de verduras orgânicas. Apesar dos viveiros artificiais estarem cada vez mais extinguindo o trabalho nos manguezais, a família mantinha fazendo o bom trabalho como mandava o Senhor.

Paulinho, apesar dos nove anos de idade e dos bracinhos magricelos, era esperto e ágil, morando na cidade grande, sempre que visitava os parentes que moram perto do rio Potengi em Nova Amsterdã, na parte mais afastada, se sentia um aventureiro nato, como aquele homem dos filmes que o pai gostava de assistir e chamava de Indiana Jones.

Por isso, sempre estava pronto para dizer sim, quando o tio e o primo o chamavam para se aventurar naquele lugar que parecia assustador e misterioso ao mesmo tempo que atrativo e divertido.

Naquele momento, os sons que chegavam a eles era apenas o calmante barulho dos remos empurrando o barco contra a água e os animais que apareciam vez ou outra nas margens, entre as raízes, galhos e folhas das árvores nativas da região. O animal que Paulinho achava mais bonito era a garça-branca-grande que seu primo carinhosamente apelidava de GraGra.

Na primeira vez em que viu um caranguejo no habitat natural dele, Paulinho se assustou, ele estava sujo, correndo e apontando aquelas patas em todas direções. Nada parecido com aqueles que sua avó trazia cozido para comerem.

Sendo sincero, ele não sabia quanto tempo havia se passado, também não se importou em perguntar, mas haviam saído de casa por volta das sete horas da manhã. Estando onde estava não se importava realmente e eles só voltariam quando a fome apertasse.

Quando alcançaram uma entrada enlameada entre dois arbustos de raízes altas, desceram na margem da água escura e puxaram o barco até que pudessem prendê-lo ao tronco de uma enorme árvore antiga ligada por uma corda.

Os três pegaram as cestas, cordas e luvas de proteção para que pudessem começar o trabalho. Ainda achava um pouco nojento ter que enfiar os pés naquele lamaçal, porém as recompensas valiam a pena. Mesmo assim a primeira regra era: cuidado onde pisa.

Era como um novo mundo sempre que pisava ali, os galhos altos no topo das árvores muitas vezes impediam o total contato do sol com o solo e a fauna cantava na mata como se estivessem em adoração.

— Vocês vão juntos — apontou o tio para Paulinho e o primo —, mas lembrem de ficarem por perto, não se afastem muito, não preciso avisar sobre o fogo, né? — Os dois garotos assentiram. — Estejam aqui dentro de uma hora e não baguncem, vamos entrar, pegar os caranguejos e sair, é isso que o manguezal nos dá e cumprimos isso, entendido? — Sacudiram a cabeça em afirmação outra vez.

Então, lá se foram os três, sendo engolidos pelas sombras do manguezal.

mangue é a vegetação predominante no manguezal

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O fogo mencionado por seu tio fazia o pai de Paulinho rir, era uma crendice, um meio de explicar o fenômeno de fogo fátuo que os menos estudados não entendiam e diziam ser os olhos de fogo de uma criatura ancestral que habitava as matas ribeirinhas há mais de um século.

Os ribeirinhos do Potengi deixavam escapar à noite, depois do jantar, antes do sono bater, que uma criatura cresceu nas matas mais densas da região e que ela era um grito de proteção contra os caçadores e usurpadores de sua fauna e flora. Era grande e rastejava deixando uma trilha larga entre as folhas e lama no chão, mas o que mais chamava atenção eram os olhos que pareciam duas bolas de fogo flutuante e que era capaz de despertar o pior medo em quem os fitasse diretamente.

Paulinho seguiu com o primo mais velho por entre as árvores até que encontraram os Buracos. Era uma das regiões onde os caranguejos se proliferavam e essa em que estavam era uma das maiores em comprimento. Então colocou as luvas de proteção e pegou um galho fino que ainda tivesse folhas e saiu. Sabia que o primo não se preocupava tanto com ele, apesar da idade, Paulinho já andava por ali faziam dois anos, conhecia bem o lugar.

Com a pequena cesta ao lado, ele aguçou os olhos e procurou por perfurações no solo que pudessem esconder os crustáceos escuros e sujos que eram tão saborosos depois de cozidos. Com o galho ainda com folhas cutucou um dos buracos e viu timidamente o animal se mostrar com suas pinças e patas. No momento certo, Paulinho o pegou pelas laterais, fazendo o caranguejo manter as pinças contra o peito. O garoto o soltou na cesta e fechou. Sorridente e quase saltitante ele se embrenhou mais no mangue, um pequeno aventureiro.

Mas não demorou para os Agourentos chegarem. Era assim que o primo chamava aquelas aves negras e grandes de cabeça avermelhada. Ele também chamava de Carniceiros, mas o verdadeiro nome, segundo seu tio era Urubu.

Esses animais normalmente esperavam pelos mortos e seus restos para se alimentar, já havia ouvido falar de momentos em que eles desciam e capturavam alguns animais ainda vivos. Como nunca antes acontecido com ele, os Agourentos começaram a pousar nos galhos ali perto, sem fazer nenhum barulho além do farfalhar de asas e folhas.

Incomodado, Paulinho sacudiu o graveto que segurava, fazendo as poucas folhas que restavam nele caírem todas ao chão. Vá embora, praga, ele queria gritar, mas isso chamaria atenção do tio e do primo que viriam correndo ao seu encontro achando que tinha se machucado, ou pior, que estava com medo — e isso Paulinho não podia permitir que acontecesse, pois ele já era um menino crescido, um rapaz.

Abaixou-se, deixando a cesta cair ao lado, pegou algumas pedras sujas, disformes e as atirou contra os Agourentos. Não atingindo de primeira e transformando isso em um jogo que apenas crianças achariam divertido. Então, lançou uma atrás da outra, esquecendo, por um momento, dos caranguejos pelos quais estava ali.

Das primeiras dez pedras que jogou, quatro delas atingiram as aves, mas foi a décima quinta que atingiu em cheio a cabeça de uma delas, fazendo com que a ave caísse em parafuso até atingir o solo enlameado.

Riu, quase gargalhou, feliz por sua conquista infantil. Entretanto, ela não durou porque mesmo de dia e em um clima quente como aquele, os olhos de Paulinho assistiram dois globos de fogo surgirem.

Tinha uma mente rápida e lembrou das histórias da velha avó. Cuidado com o fogo, ela dizia, não brinca com o fogo, menino. O fogo é vivo. Ele come. A história de depois do jantar dizia que os povos locais, antes das embarcações europeias, estavam com fome após um grande período de estiagem que castigou suas plantações, então alguns homens decidiram se arriscar nas matas e manguezais em busca do espírito que as protegia em busca de um acordo. Por incrível que possa parecer, o espirito foi rápido em aceitar esclarecendo: não se mataria nem caçaria as aves no céu, nem as cobras que rastejam no chão ou os animais que correm em quatro patas, aos homens, naquele lugar sagrado, é dado apenas os peixes que vivem nas águas e os seres que tinham pinças e garras. E, aos que não respeitassem o acordo, comida se tornariam para o espírito. Por isso os velhos sempre diziam para respeitar a natureza, pois os que assim não faziam, não voltavam para casa depois de saírem.

Em um momento estava fitando o corpo morto da ave que parecia afundar na lama aos poucos, no outro os sons do manguezal ganharam vidas. Insetos, aves e barulhos desconhecidos. Parecia que a mata o incriminava pela morte do Agourento, mas o que verdadeiramente fez seu coração bater mais rápido foram os globos de fogo que o fitavam das sombras de algumas árvores baixas que faziam uma espécie de gruta vegetal.

Algo que na cabeça de Paulinho só poderia existir na imaginação se desdobrava de dentro daquela gruta, os globos que ardiam agora soltavam labaredas e faziam parte de um rosto reptiliano. Então, a enorme serpente saiu do esconderijo deixando a pele vermelha suja a mostra. Era grande, enorme, talvez maior do que a cobra Anaconda que ele viu em um filme na madrugada sem os pais saberem. Mas essa parecia bem pior, pois não só os olhos eram de fogo, também havia algo parecido com a crina de um cavalo, só que curta e em chamas.

Paulinho tentou correr mesmo com as pernas tremendo, dois gravetinhos verdes batendo uma contra a outra, ainda assim não foi longe. A Serpente de Fogo sacudiu o corpo pesado, fazendo lama e folhas subirem pelo ar, o barulho de galhos se quebrando e do canto dos animais aumentou em um agouro ritualístico.

Cuidado com o fogo, as palavras reverberavam em sua mente. Paulinho gritou quando sentiu o puxão nas pernas, mas logo sua boca estava no chão junto ao corpo, sentia o gosto de sangue e terra na língua. Chamou pelo primo, chamou pelo tio, deles nada ouviu como resposta. Chorou enquanto era arrastado e se debatia mesmo assim de nada adiantava, o rabo musculoso da criatura o envolvia com firmeza e quando próximo o suficiente, ergueu o garoto até que ficasse frente a frente com os olhos de fogo.

O fogo é vivo. Era aterrador para Paulinho, olhou para baixo e viu o chão repleto de caranguejos com as patas e pinças para cima, abrindo e fechando, como uma multidão esfomeada esperando por seu rei servi-los com pão e vinho. Nas árvores os Agourentos assistiam à cena como se fossem os juris de um julgamento e aquela criança estava sendo julgada culpada pela própria natureza.

Ele come. Não havia nada naquele fogo que parecesse bom, Paulinho só queria ir para casa, abraçar a mãe e chorar em seu colo, não queria mais aventuras, não queria mais pegar caranguejo nem ir na casa da avó. Queria a escola, os filmes com o pai… Chorou uma oração para Deus, como os pais ensinavam quase toda noite. Não adiantou. A serpente se inclinou e esmagou o menino lentamente, os ossos se quebrando podiam ser ouvidos junto aos gritos de dor. Então, A Serpente de Fogo se inclinou para frente e abocanhou a cabeça de Paulinho desprendendo com facilidade do corpo magricelo. Depois de engolir a cabeça, soltou o saco de ossos esmagados no chão e os caranguejos avançaram picotando e comendo da pele enquanto os Agourentos abriam do peito até a virilha com seus bicos melados de sangue.

A Serpente, de sua gruta de galhos e folhas, assistia satisfeita.

Serpente de Fogo ou Boitatá

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Antônio Gomes

Antônio Gomes

Colaborar do Dinastia N. Um amante irremediável da cultura pop em todas as suas formas. Escritor e leitor voraz. Seguidor fiel do mestre Stephen King e filho dos anos noventa, sendo o sonho conturbado da realidade que ainda está aprendendo a dar os primeiros passos, é fácil me encontrar comendo batatas, assistindo séries ou escrevendo alguma história com plot twist.