A lição inicial de qualquer curso de educação financeira é não gastar mais do que você ganha. É o básico. A medida que permite o uso de depósitos futuros na conta do trabalhador no FGTS para o pagamento de prestações de financiamento imobiliário, aprovada nesta terça-feira (18/10) pelo conselho curador do fundo, vai na contramão desse princípio.
O conselho do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, composto por seis representantes do governo, três dos trabalhadores e três dos empregadores, deu sinal verde por unanimidade a uma proposta do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) que cria uma “caução” dos depósitos futuros do FGTS, permitindo compor a renda da família para tomar um crédito habitacional.
A medida vem a duas semanas do segundo turno das eleições, num momento em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta atrair o eleitorado de baixa renda.
Por enquanto, a medida vai valer para as famílias mais pobres, aquelas com renda bruta de até R$ 2,4 mil mensais, em programas com funding do FGTS — ou seja, o Casa Verde Amarela. Portanto, vai ser uma modalidade operada basicamente pela Caixa — o banco estatal financia quase todo o programa habitacional do governo.
Para poder usar o “FGTS futuro”, o cliente terá de conceder uma autorização ao banco para que este faça a alienação ou cessão fiduciária desse fluxo. À medida que o dinheiro for entrando na conta, vai para essa caução.
A liberação é um convite a se dar um passo maior que a perna. Na reunião do conselho curador, cuja íntegra está disponível no site do FGTS, o secretário-executivo do MDR, Helder Melillo, argumentou que uma família que teria renda para pagar uma prestação mensal de R$ 500, mas gostaria de comprar outro imóvel, cuja parcela é de R$ 600, agora vai poder. Nas palavras dele: “A partir dessa medida, ela [a família poder usar o crédito futuro que ela tem para fazer essa complementação e acessar esse imóvel que ele não seria… que essa família não conseguiria sem essa medida”.
A proposta foi aprovada de forma unânime pelos membros do conselho curador. Na reunião dessa terça (18/10) não houve discussão sobre os riscos da medida. Também não se falou sobre o que acontece se o trabalhador for demitido antes de saldar a dívida.
Caso o mutuário seja demitido, o que vai acontecer é que a diferença será integrada ao saldo devedor. Ou seja, ele não apenas ficará sem renda, mas se verá diante de uma dívida maior, pagando por um imóvel que, em outras circunstâncias, provavelmente não lhe seria acessível.
Na prática, há um risco de inadimplência maior do que seria o natural para aquele perfil de cliente numa modelagem de crédito. Não é por outra razão que a Caixa — e qualquer outro banco — exige uma renda mínima de quem vai tomar um financiamento imobiliário, que representa um compromisso de pagamento de longo prazo.
E se o cliente de fato não pagar a conta? Nesse caso, a Caixa tem de reconhecer a inadimplência e a família pode, no limite, ter o imóvel retomado pelo banco. Esse risco já existe numa transação normal de financiamento imobiliário, mas será aumentado pelo fato de o cliente ter comprado uma casa que sua renda, de outra forma, não permitiria.
A medida vem num momento em que as taxas de juros estão altas e o endividamento das famílias já está em patamar recorde. O endividamento com o sistema financeiro nacional em relação à renda estava em 53,14% em julho, recorde para a série histórica iniciada pelo Banco Central em 2005. Excluindo da conta o crédito imobiliário, o endividamento é de 33,64%, nível também inédito.
Vale lembrar que a Caixa é um banco estatal, e uma máquina valiosa no contato do governo com a população mais pobre, já que a instituição é quem distribui os benefícios sociais. Portanto, o “FGTS futuro” pode até amealhar votos, mas se os riscos não forem muito bem administrados, o risco é de a conta estourar no colo de Bolsonaro caso reeleito.
Com informações de Talita Moreira / Valor*
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