Um problema jurídico incandesce cabeças e instiga discussões, no Brasil atual. O caixa dois é crime? Deve ser visto o fato numa única acepção, ou mais de uma? Em intervenção de voto no STF, a Ministra Cármem Lúcia sinalizou afirmativamente. Não tem poder normativo algum, é apenas um “obiter dictum” de uma Ministra, em processo do qual não era sequer relatora. E que hoje preside com grande sapiência a Suprema Corte, sem jamais deixar de empreender um corte vertical na análise dos casos que lhes são devidamente submetidos.
O direito romano não é sustentado como obra divina, como o Corão. Porém, sem nenhuma dúvida, é obra de reflexões humanas extraordinárias, jamais repetidas, pois orienta muito o direito nos Países juridicamente aculturados de nossos dias.
Nos primórdios da civilização romana, por óbvio, não poderia haver leis, no sentido de manifestações legisladas. Entretanto, as condutas deveriam ser reguladas, sob pena de selvageria. Nesse quadrante, os costumes (direito consuetudinário) foram a única forma de expressão do que se considerava justo. Suas marcas são a informalidade, sem prejuízo da obrigatoriedade.
No caso sob comento, o “caixa dois” se assentou na vida política nacional como um costume. Resta, porém, saber se produziu direito. Aqueles homens inteligentíssimos, no plano jurídico, em sua evolução, classificaram de modo tripartite os costumes: “costumes “praeter legis”, “costumes “secundum legis” e costumes “contra legem”, já, obviamente, no momento de existência de leis escritas.
Alguns dizem tratar-se de uma tautologia o costume “secundum legis”, porquanto, se já existe lei, não há porque invocar-se costumes. Estes podem ser importantes ferramentas interpretativas. O costume “contra legem” não pode prevalecer, porque sobre ele predomina a lei. E o costume “praeter legem” serve para os casos omissos, porém, segundo princípios do sistema.
Está visto que as leis balizam os costumes. Se a lei – eleitoral, não penal – proibia o financiamento por meio do “caixa dois”, o costume seria contrário à lei e, portanto, não poderia ser invocado. As demais formas de costume ficam prejudicadas, na hipótese que agita nosso País.
Entretanto, contrário à lei eleitoral e, não, à lei penal. As implicações são completamente distintas. Proibida pela lei eleitoral, a interpretação, que deve ser estrita, dado seu caráter proibitivo, implica em perda do mandato e de outras cominações – eleitorais. Se o mandato já foi exercido, “consummatus est”.
Essa é a simples ajuda – empresarial, por natureza -, sem que a entidade coadjuvante tenha obtido nenhum benefício governamental ou se o político recebedor das verbas, por não ter sido eleito ou qualquer outro motivo, nada intermediou para saquear os cofres públicos em prol do doador. Não houve corrupção. Com certeza, a intenção era essa. Porém, o direito penal não alcança as intenções. E, sendo o “caixa dois” um “crime-meio” necessário à perpetração do “crime-fim” (corrupção), inexistente o crime-meio não há que se cogitar de punição do crime-fim (princípio da consunção ou da absorção, haurido na máxima “non bis in eadem”).
Diversa é a hipótese em que o recebedor se empenhou em praticar manobras pelas quais o direito público foi surrupiado para beneficiar a empresa que o auxiliou na campanha, por diversas maneiras possíveis. Nesse caso, o crime-fim se consumou e a matéria e as penas são criminais, sem prejuízo das reprimendas do campo eleitoral. A jurisprudência está cristalizada na Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça.
Não se pode falar de falsidade ideológica – declaração falsa, comissiva ou omissiva – em documento escrito, sem prejuízo e corresponde benefício. Portanto, os políticos acusados de praticantes de conduta denominada como “caixa dois”, sem perpetrar corrupção ou concussão, podem ser punidos no campo penal ou apenas eleitoral. Tudo depende das investigações e das conclusões delas emergentes.
Sabemos que uma boa parte dos acusados poderá ser absolvida criminalmente com esta tese. Outra grande parte não escapará da condenação. Mas é o direito, fundado em suas lógicas férreas e tradicionais. Fora deles, estaremos deixando de viver sob um Estado Democrático de Direito.
Amadeu Roberto Garrido de Paula – Advogado e sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.
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