As Mulheres Que Amavam Bankoff, PT. II — Nova Amsterdã 03

Na parte final de As Mulheres Que Amavam Bankoff vemos os resultados das descoberta de Akeyo e sua vingança cega.

Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos. As obras serão publicadas semanalmente as terças-feiras. Na terceira publicação da série Nova Amsterdã, daremos continuidade na segunda e última parte de As Mulheres Que Amavam Bankoff. Clique aqui para ter acesso a parte um.

AVISO: insinuação de sexo, linguagem explícita, sobrenatural, violência.

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ALI ERA UMA TERRA VELHA E PODEROSA. Akeyo sabia disso e por isso seguiu até lá com a bolsa em mãos. Dali há dezenove anos aquele lugar entraria para uma lista de recordes mundiais famosos, mas ela não estaria viva para ver isso.

A praia de Pirangi do Norte ficava à aproximadamente doze quilômetros de distância da capital do estado do Rio Grande do Norte, Nova Amsterdã. Era o lar de uma das anomalias naturais mais famosas da natureza, entretanto, todos acreditavam em uma história um pouco diferente da verdadeira a respeito de como o Grande Cajueiro chegou a se tornar o que era hoje.

Os galhos, como em um cajueiro comum, não cresceram para cima, mas sim para os lados e com o tempo, por causa do próprio peso, os galhos se curvaram até alcançar o solo fértil. Tais galhos criaram raízes que se embrenharam e agarraram o subsolo e então passaram a crescer novamente, como se fossem troncos de uma nova árvore. E foi a repetição desse processo que deu a impressão de haverem vários cajueiros quando, na verdade, são apenas dois — com apenas um deles sofrendo a anomalia e o outro crescendo normalmente como deveria ser.

A crença popular aceita era de que um pescador chamado Luís Inácio plantou o cajueiro em 1888. O ano estava certo, mas não o resto. Luís realmente morreu sob as sombras do cajueiro que foi plantado por Zaci Xinavane — um escravo liberto que fez o gesto em homenagem aos deuses da terra natal de seus pais e avós, pois sua liberdade precisava ser comemorada, afinal, foi naquele ano em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea que abolia os negros do trabalho escravo. Zaci em meio aos seus tinha um alto posto, pois era sacerdote do culto a divindade das transformações que batizou o cajueiro e o fez se expandir daquela forma, pois se agradou do gesto de seu servo.

Naquela noite, oitenta e sete anos depois da plantação, Akeyo se encontrava ajoelhada entre os galhos mais profundos que formavam um emaranhado pesado, como uma mão com os dedos enfiados na terra e uma pequena cobertura se formasse. Lá ela espalhou a toalha escura com os símbolos ancestrais em tinta branca e os entalhou também nos galhos. O vento noturno já não a preocupava mais, pois em seus olhos que mais pareciam duas luas negras só inflamava o ressentimento.

Nas profundezas de suas crenças, desde a infância, a mãe a alertava de que os poderes sobrenaturais assim como as pessoas que caminhavam sobre a terra não eram extremos opostos de bem e mal, mas uma energia neutra e eram os Moldadores, pessoas como ela que eram aptas de serem canais divinos, quem decidiam a maneira de usar o Dom concedido. Para o bem ou para o mal, ela era a portadora da decisão.

A decisão estava tomada e amargo seria o gosto futuro, mas ela engoliria se pudesse naquele momento descarregar todo o peso em seu peito de amar alguém que jamais a amaria de volta e não por não poder, mas Bankoff estava afundado em sua própria hipocrisia, como um porco que chafurda na lama, ele se atirava na impureza, quebrando as promessas ao deus a quem servia.

— Se a garota é o que ele deseja vamos inflamar sua mente. — Disse para a noite e para as folhas no chão que eram sacudidas pela força noturna.

Sacudiu as nove ervas pelo chão e posicionou a vela em um pires e ao lado uma xícara com pó de café. Com tudo pronto e a determinação pulsando nas veias latentes em seu pescoço suado, Akeyo respirou fundo e com os olhos fechados bateu com a mão esquerda no chão três vezes fazendo a poeira subir como em um terreiro varrido em um dia seco. O corpo dela vibrou e os lábios formigaram, mas não cedeu, permaneceu firme de joelhos fitando os galhos, incontáveis galhos anciões que tanto testemunharam com o passar do tempo.

— Olha para mim, Oyá, transformadora e poderosa mãe do entardecer, o vento que anuncia a tempestade e senhora dos eguns. Me agracia com tua presença, me enche com tua forma e lidera minha vingança, pois ferida fui pelo amor e ele é violento como teu primeiro amor.

O vento se tornou mais forte e Akeyo pôde sentir a presença que desceu no lugar tão rápida quanto um raio que atinge uma árvore e cria uma tocha natural. Curvou-se ainda mais, a ponto de deixar as mãos ao lado da xícara, tocando com o rosto no chão e só voltou a erguer o olhar quando a chama na vela acendeu. Ao longe, vinda da noite como se um amontoado de escuridão tivesse se juntado até ganhar uma forma sólida e tal forma era assombrosamente bela: uma mulher alta de pele tão preta que chegava a ser azulada, como se ela fosse um poço de melanina, sobre os seios fartos pendiam cabelos grisalhos em cascata e em seu rosto de bochechas fartas um par de olhos completamente brancos a fitava com firmeza. No braço esquerdo deslizava uma serpente tão escura quanto sua dona e na outra, um alfanje, esse arrastava no chão deixando um risco na areia.

— Ergue teu rosto, filha minha. — A voz era semelhante ao som das ondas quebrando sob a influência dos ventos marinhos na encosta.

A divindade desceu para junto dela, ajoelhando-se na frente dela e deixando a cobra deslizar de seu braço para o chão, agora, com a mão livre, ela colocou um dedo dentro da xícara e logo fumaça subiu de lá. A bebida preta preencheu o pequeno recipiente e ela a bebeu, em seu rosto a expressão de prazer era real.

— Permita-me ver seu coração, revele seu desejo e me dê um pouco de alma para comer. — Os lábios tão escuros quanto a pele se moviam como os de um mortal, mas o poder e o peso de cada palavra eram antiguíssimos, Akeyo podia sentir isso com facilidade.

— Sou sua, Oyá, corpo e alma. — Akeyo fitou os olhos completamente brancos, decidida a moldar aquele poder da maneira que fosse preciso. As consequências não importavam naquele momento, ela queria ver Bankoff e a garota pagarem.

A cobra esgueirou-se pelo tecido no chão até que a boca estivesse próxima o suficiente da mão esquerda para fincar as presas no dedo anelar de Akeyo que teve os olhos virados na orbita até estarem tão brancos quanto o da divindade. Em sua mente veio a memória de mais cedo enquanto assistia Ana Maria dizer ao padre Bankoff, conversando sobre carrosséis e cavalos, o quanto ela admirava aqueles animais. Quando a lembrança se foi tudo mais na mente dela também, fazendo-a cair em um sono profundo enquanto Oyá fundia seu poder com as vontades da jovem e o resultado dessa combinação traria aos moradores locais uma noite de terror.

Oyá (ou Iansã), orixá guerreira e forte, elementar dos ventos e dos raios

6

O SOM DA FESTIVIDADE AINDA PODIA SER OUVIDO, mesmo ali, no lugar mais distante da propriedade da igreja. Estavam deitados na cama da casa paroquial com os corpos nus e suados, a respiração ofegante e o corpo cobrindo apenas os sexos. Padre e fiel fitavam o teto após a consumação do desejo que a tanto guardavam na troca de olhares e palavras ternas. Ana Maria virou o rosto e seus lábios tocaram a bochecha quente de Bankoff que sorriu pequeno com o gesto, também se virando para poder tomá-la mais uma vez pela boca.

Era uma crença conjunta de ambos de que o fogo que os consumira durante todo aquele tempo ainda queimava em seus interiores os sentimentos que pareciam se elevar a cada toque e gesto. Tudo parecia perfeito dentro daquele cômodo, imersos naquela nuvem erótica e quente. O mundo lá fora parecia apenas uma recordação distante.

Estavam envolvidos e, de repente, a janela do quarto foi aberta violentamente pelo vento, o que acabou assustando os dois. O padre levantou rapidamente, sem se importar com a falta de roupas e o membro pendendo entre as pernas, tentou forçar a janela para que voltasse a fechar, mas o ferrolho que a mantinha dessa maneira repousava no chão, fora arrancado pelo impacto forte.

Ele olhou para a cama e lá testemunhou uma cena perturbadora. Ana Maria tinha os peitos pequenos à mostra e as mãos no pescoço em um claro sinal de que não conseguia respirar ou estava com algo preso na garganta e os olhos estavam arregalados e vermelho como poças de sangue.

— Por Deus… — As duas palavras escapuliram de sua boca e o resto da frase morreu no caminho.

A visão era tão aterradora que o padre simplesmente não sabia como reagir, nunca havia testemunhado algo como aquilo, entretanto, o pior ainda estava por vir. Quando Ana finalmente conseguiu falar não foram palavras que saíram e sim relinchos como os de um cavalo, altos e enfurecidos, preenchendo o pequeno quarto de maneira quase ensurdecedora que o fizeram proteger instintivamente as orelhas com as mãos. Então a bizarrice se intensificou ao que ela caiu de quatro sobre a cama e ao mesmo tempo em que uma pelugem castanha crescia por todo o corpo, um rabo farto se mostrava pouco acima das nádegas e as mãos e pés de dedos contraídos se transformavam em cascos deformados. Para o padre Bankoff aquela era uma visão que nem o próprio Dante poderia ter compreendido em suas andanças pelo Inferno.

O surpreendendo de maneira aterradora mais uma vez, o que antes era Ana só tinha de humano agora a cabeça que logo desapareceu em uma torrente de labaredas que ia do amarelo, passando pelo laranja até o vermelho. Era como uma tocha viva. A cama arriou com o peso da criatura que relinchou mais uma vez, ficando de pé sobre as quatro patas.

Foi por pouco, por muito pouco que um dos cascos não o atingiu no rosto quando a criatura simplesmente desceu dos restos da cama e foi em sua direção, saltando pela janela e quebrando madeira e tijolos fugindo para a noite alegre lá fora enquanto ele estava nu e em choque sentado no chão com as mãos tremendo e lágrimas escorrendo pelo rosto.

Maior cajueiro do mundo

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FOI COMO SE O INFERNO TIVESSE DESCIDO EM PARNAMIRIM, lar da praia de Pirangi do Norte que, por sua vez, era a residência fixa do Grande Cajueiro. Bankoff não saberia dizer quanto tempo se passou entre o momento em que a coisa na qual Ana havia se transformado saltou pela janela e agora onde ele se encontrava na porta da frente da igreja fitando o pandemônio que se instalara na festa junina. Sua cabeça ainda se perdia no meio de inúmeros questionamentos a respeito do significado daquilo. Não era um descrente, afinal, era um servo do Senhor, mas jamais achou que coisas como aquela existissem. Bestas diabólicas de aparência animal pareciam apenas fazer parte do imaginário popular, mas ali estava ele, um padre e também o homem que havia dormido com uma garota-cavalo que tinha chamas saindo do pescoço ao invés de uma cabeça.

Várias das pessoas que estavam na festividade se refugiavam agora na igreja, outra parte havia corrido de volta para casa e uma pequena parcela se encontrava estirada nas ruas de paralelepípedo queimadas como alguns das barracas ou pisoteadas como outras. A criatura havia deixado um rastro de destruição por todo o local, como uma praga na colheita e pelas colunas de fumaça que podia ver subindo contra a noite em diversos pontos da cidade, padre Bankoff acreditava que o estrago fora além da região em que estava.

Ele que era considerado o homem mais novo a ocupar aquele cargo na congregação católica apostólica romana naquela região, parecia mais velho do que era, uma expressão abatida e olhar distante pesavam em seu rosto enquanto ele tentava se manter são diante da histeria das pessoas que se refugiaram na igreja. Queria gritar, se ajoelhar e pedir perdão a Deus por ter sucumbido aos desejos da carne e que se aquela era sua punição que fosse apenas dele e não da cidade.

Aproveitou o momento de distração dos presentes na congregação e já que estava na porta da frente, a fechou com cuidado e desceu os degraus que levavam as barracas em chamas, quando chegou ao carrossel o viu derrubado, os cavalos de plástico e madeira derretiam dando uma aparência macabra aos cavalos coloridos, olhando através daquela destruição, Bankoff a viu, perto das sombras onde a tocha no lugar da cabeça espantava o escuro na estrada que levava a praia.

A presença da criatura era pulsante e pesada, mas passado o choque inicial ele não a temeu, a maneira como amava a garota que talvez estivesse ali dentro era errado diante da posição em que ele se encontrava com a igreja, diante do compromisso feito com Deus. Por isso andou um pouco mais e ao alcançar a criatura sem cabeça, caminhou ao lado dela, ambos descendo a rua baixa de paralelepípedo.

Mula sem cabeça em sua forma final

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AKEYO DA SILVA FOI ENCONTRADA AO MEIO-DIA. Teria sido encontrada antes se as pessoas que trabalhavam no Grande Cajueiro colhendo os frutos e as castanhas tivessem mantido a rotina de levantar às cinco horas da manhã e chegar lá antes, mas devido os acontecimentos na festa junina, as pessoas se mantinham trancadas e amedrontadas. O laudo oficial de sua morte é que havia sofrido um derrame cerebral hemorrágico, porém, a informação que corria nas ruas, era de que entregou a alma ao diabo e foi embora com ele, já que fora encontrada em meio a objetos suspeitos com símbolos que evocavam a magia dos escravos que os católicos chamavam de magia negra ou associavam ao satanismo.

O padre Filipe Bankoff desapareceu na noite dos acontecimentos, não voltou a ser visto nem seu corpo foi encontrado e os que se refugiaram na igreja disseram que o homem saiu para caçar a criatura diabólica que destruiu a região praiana daquele lado de Parnamirim. Assim como ele, Ana Maria, havia desaparecido durante a confusão na feira, ao menos, era a crença de todos. Até acreditaram que ela poderia ser uma das pessoas mortas, já que alguns estavam irreconhecíveis, carbonizados e empoeirados.

A presença de um cavalo sem cabeça e com fogo saindo do pescoço destroçando uma vila não vendeu bem na mídia, nem chegou a ganhar força, já que a polícia logo se posicionou de maneira contraria, afirmando que foram pessoas montadas em cavalos que causaram os crimes, pois ainda haviam pequenas revoltas contra cidadãos de cor que eram uma parte considerável da população.

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Antônio Gomes

Antônio Gomes

Colaborar do Dinastia N. Um amante irremediável da cultura pop em todas as suas formas. Escritor e leitor voraz. Seguidor fiel do mestre Stephen King e filho dos anos noventa, sendo o sonho conturbado da realidade que ainda está aprendendo a dar os primeiros passos, é fácil me encontrar comendo batatas, assistindo séries ou escrevendo alguma história com plot twist.