Se tem uma coisa pela qual todas as pessoas anseiam é por voz. Ser ouvida, fazer-se entender, ter representatividade a partir de sua fala são necessidades que têm levado muita gente a lutar, a reivindicar isso como direito. Porém, seja por preconceitos culturais ou por conceitos convenientemente arraigados na sociedade, muitas vozes têm sido caladas, desprezadas ou ignoradas ao longo do tempo.
No Brasil, transexuais, por exemplo, fazem parte de uma parcela da população que diariamente precisa mostrar muita força para se fazer ouvir. Com base em dados da revista especializada The Lancet, estima-se que haja entre 725 mil e 2,4 milhões transexuais no país, o que equivale a, no máximo, pouco mais que 1% da população brasileira. Minoria marginalizada que são, sofrem com a violência brutal de uma das taxas de assassinato a transgêneros mais altas do mundo e, além disso, os que sobrevivem, encontram inúmeras dificuldades para alcançar uma colocação no mercado de trabalho e concluir estudos – entre outras barreiras que lhes são impostas.
Ao mesmo tempo em que lutam por voz num sentido mais conotativo, transexuais desejam que suas vozes também denotem as transformações físicas de acordo com sua identidade de gênero. Para muitas dessas pessoas, esse é um quesito importante na autoafirmação e no processo de aceitação na sociedade. No entanto, os procedimentos cirúrgicos e medicamentosos ainda não se mostram suficientes numa adaptação vocal que evidencie o padrão almejado por quem procura esses recursos.
Melanie Matos é estudante de Licenciatura em Espanhol, tem 31 anos e é uma mulher trans. No processo de sua transição, Mel, como também se apresenta simpaticamente mesmo a quem é recém-conhecido, concluiu que a própria voz era um elemento particularmente determinante para a sua autoafirmação feminina e também para a sua segurança. “Vivemos numa sociedade que nos oprime e estamos em constante perigo de agressão, de morte. Uma mulher trans nunca foi um homem, mas infelizmente nasceu num corpo que se expressa de forma masculina, então nós ficamos com medo porque uma dessas características é a voz”, afirma.
Por esse motivo, ao receber indicação de amigas, Melanie procurou ajuda em um serviço de terapia vocal oferecido pelo Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Em tratamento há aproximadamente um ano e meio, a estudante conta que os progressos são cada vez mais notórios e mostra empolgação com sua nova forma de falar. “Evolui muito e me sinto bem mais confortável com a minha voz. Antes, eu ficava constrangida, mas agora sinto que ela sai mais suave, mais delicada, do jeito que eu queria”, comemora Melanie.
O Programa de Assistência Vocal e Comunicativa Para Indivíduos Transexuais é uma ação de extensão idealizada e coordenada pela professora Juliana Godoy, do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade, e concedeu atendimento terapêutico a pelo menos 15 mulheres trans desde março de 2017. Atualmente, utilizando a estrutura da Clínica Escola localizada no Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), Juliana e sua equipe, formada por estudantes da graduação na área, atendem a oito pacientes em sessões semanais de terapia vocal.
Nesse projeto, cada estudante tem uma paciente e realiza os atendimentos sob a supervisão da docente. Depois, todos se reúnem com Juliana, discutem os casos, definem os passos seguintes a serem dados na terapia e debatem as questões sociais das mulheres atendidas e como fazê-las se sentirem mais à vontade para obter uma eficácia maior no tratamento. “Perguntei aos alunos se eles abraçariam a causa e aí nasceu o projeto. A nossa intenção é continuar enquanto tiver paciente para atender”, conta Juliana.
Segundo Juliana Godoy, a participação de estudantes no projeto é crescente e extremamente positiva no sentido da compreensão do universo das mulheres trans: “Todos que fazem parte do projeto demonstram muito interesse no debate dessa temática e também na conscientização do que precisa ser melhorado para a qualidade de vida dessas pacientes, em formas mais adequadas de trabalhar com elas e em como tornar a sociedade mais inclusiva”. A professora ainda diz que o objetivo é formar profissionais habilitados a lidar com essa população tanto na questão emocional como no aspecto técnico.
Tal relato é corroborado pelos integrantes do projeto. Ana Clara Nascimento, estudante do curso de Fonoaudiologia da UFRN e participante mais nova da equipe, demonstra entusiasmo ao falar de sua atuação. “Quando descobri o projeto fiquei muito empolgada por esse caráter social. É completamente diferente vivenciar na prática o que a professora diz em sala de aula, é encantador. Confesso até que estou tentada a investir nessa área de voz a partir daqui”, afirma Clara.
Para quem e como é a terapia?
Voltada para mulheres trans que desejam ter uma voz mais identificada com a aparência após a transição, a terapia não tem um período preestabelecido de duração. De acordo com a professora Juliana Godoy, o tempo de tratamento pode ser diferente para cada pessoa. “Embora existam muitas pesquisas, nenhum estudo clínico aponta quanto tempo em média leva para que a paciente se sinta bem e tenha alta. Já tivemos pacientes que completaram o atendimento em um ano e outra em sete meses”, explica a docente.
Mas e os homens trans? Eles não são público do programa? A professora Juliana detalha os pormenores que dão conta dessa delimitação: “Eles têm uma facilidade nesse aspecto porque o uso do hormônio masculino, a testosterona, causa um crescimento da musculatura da laringe, onde a voz é produzida, o que faz com que a prega vocal fique com um tamanho maior, desenvolva mais massa muscular, e a voz, invariavelmente, fica mais grave”.
Nesse sentido, a terapia se apresenta para as mulheres trans como a principal alternativa para vocalizar suas emoções e sentimentos no timbre desejado. Quando chegam à clínica, as pacientes passam por uma primeira sessão de avaliação, quando são recolhidos a história clínica e os dados de saúde e é feita uma gravação para obter a descrição dos aspectos perceptíveis dessa voz. Daí em diante, definem-se as estratégias a serem utilizadas para o tratamento mais adequado.
Entre essas estratégias estão exercícios que flexibilizam o uso da laringe, o que facilita o alcance de tons mais agudos. Também são trabalhadas outras maneiras de comunicação, como a gestual, dando às pacientes consciência de como a usarem, além de praticar a parte motora de articulação. As repetições, a dedicação e a disciplina são essenciais nessa fase, pois a cada objetivo atingido a terapia avança. “No começo é difícil, mas eu sempre procuro seguir o tratamento e já mudei muito”, afirma Melanie, que gosta de cantar músicas da banda americana Evanescence, cuja vocalista, Amy Lee, usa como inspiração.
Mel sente que mudou e não está desacompanhada nesse processo. Juliana Godoy, vinda de São Paulo, é professora da UFRN há dois anos e também uma aprendiz do que a experiência na clínica oferece. “Sou uma pessoa antes e outra depois do projeto. Essas pacientes têm uma lição muito bonita a ensinar. É algo bem pessoal, mas minha visão e minha empatia mudaram bastante. Hoje tenho outra postura diante de certas coisas porque elas apareceram na minha vida”, comenta a docente.
Para participar do programa, as interessadas devem procurar a Clínica Escola de Fonoaudiologia, no HUOL, e efetuar o cadastro ou enviar um email para o endereço godoy.juliana@gmail.com. Gratuito, o tratamento pode ajudar a reafirmar a autoestima de uma população que é sistematicamente silenciada, mas que, com voz, tem muito a dizer.
Texto produzido pelo Jornalista Marcos Neves Jr. da UFRN*
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