A 3ª Vara da Fazenda Pública de Natal indeferiu pedido liminar de urgência apresentado pelo Estado do Rio Grande do Norte para obrigar um paciente internado em estado grave no Hospital Giselda Trigueiro a receber transfusão de sangue, a qual vem sendo por ele recusada por motivações religiosas, tendo em vista que é seguidor da doutrina Testemunha de Jeová.
Na análise do pedido de urgência, prevaleceu o entendimento de que houve legitimidade na recusa do paciente de se submeter às transfusões de sangue, “visto que tal procedimento, para ele, implicaria em tratamento degradante, por afronta direta às suas crenças”.
Segundo o Estado, a transfusão é necessária como forma de resguardar a vida do paciente. Ele tem histórico clínico de ser portador do vírus HIV, diabético e, atualmente, diagnosticado com a Covid-19. O Estado alega que, em virtude do seu quadro de saúde, o paciente vem apresentando redução significativa do nível de hemoglobina no corpo, necessitando, com urgência, de procedimento médico de transfusão sanguínea, sob pena de correr risco de morte em caso de não realização.
“Ao menos à primeira vista, entendo que deve preponderar a autonomia da vontade do requerido, pessoa adulta, consciente, em plena condição de exercer seus direitos mais caros. Deve ser obedecido o dever de esclarecimento, ao paciente, acerca dos desdobramentos, dos efeitos e das consequências de sua opção, por intermédio de informações adequadas e detalhadas”, destaca a decisão do juiz Bruno Montenegro.
O magistrado aponta ainda que caso o pedido fosse atendido e a transfusão de sangue fosse realizada, não haveria possibilidade de reversão dos efeitos da medida, não atendendo assim aos requisitos de concessão da tutela de urgência. “Uma vez permitida a transfusão compulsória de sangue, os direitos titularizados pelo demandado estariam irremediavelmente afrontados. E o pior: com a chancela do Poder Judiciário”.
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Análise do caso
Ao analisar o pedido do Estado, o juiz Bruno Montenegro ressalta que algumas temáticas conduzem o julgador a terrenos pantanosos, os quais inspiram cuidados e despertam conflitos de interesses e divergências que impedem uma solução única, pronta e acabada.
O juiz aponta que as Testemunhas de Jeová constituem uma comunidade religiosa cristã que remonta ao século XIX. “Acreditam eles, pois, que Deus permite o consumo da carne de animais, mas impõe a abstenção em relação ao sangue, o qual representaria a alma e a vida. É dizer: essa religião professa a crença segundo a qual a introdução de sangue no corpo, seja pela boca, seja pelas veias, deságua em violação às leis de Deus, por contrariar os dogmas previstos em diversas passagens bíblicas”, relata.
Observa o julgador que a recusa à transfusão de sangue não conduz ao desejo de morrer ou ao desprezo pela vida por parte daquele que refutou o procedimento. “A rigor, as Testemunhas de Jeová consideram a vida uma dádiva divina e não hesitam em acionar a assistência médica, desde que necessária. Defendem e fomentam, todavia, o desenvolvimento e o manejo de métodos alterativos à transfusão de sangue e, em caso de inviabilidade ou de inexistência, optam pela resignação quanto à eventual morte, com a manutenção, incólume de suas convicções religiosas”.
Consentimento do paciente
A decisão cita ainda que a Resolução nº 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina prestigia o consentimento do paciente. “Neste particular, entende-se que a recusa a determinado tratamento pelo paciente maior e plenamente capaz pode ser feita tanto no momento do atendimento médico, como se deu na espécie, como através de documento escrito e previamente elaborado”.
Em sua interpretação, somente quando não for possível obter o consentimento informado e quando não existir documento de declaração antecipada de vontade, o médico poderá adotar todos os tratamentos de que dispuser e que entender melhor para o paciente.
Em sua decisão, o juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública de Natal entendeu que estando o paciente esclarecido sobre todos os possíveis riscos, bem como sendo o âmbito de sua decisão limitado à sua esfera individual, é possível sua recusa em submeter-se a transfusão sanguínea, em respeito a sua autodeterminação e a sua liberdade de crença.
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