A instabilidade política na América Latina, marcada por impeachment de presidentes, tem sido estudada por diversas disciplinas. No Brasil, onde quatro presidentes já foram afastados, a aplicação de conceitos da física, como a mecânica estatística, trouxe novas luzes sobre os fatores que levam à ruptura entre Executivo e Legislativo. O estudo, conduzido por pesquisadores do Instituto de Física da USP e da Universidade de Aston, no Reino Unido, mostra como essa área da física pode modelar crises políticas.
O trabalho, publicado na Physical Review E, utiliza a mecânica estatística para compreender como o comportamento coletivo de grupos — no caso, o Congresso Nacional — emerge das interações entre indivíduos. “A mecânica estatística explica o comportamento de sistemas compostos de um grande número de partes interativas, modelando essas interações e calculando quantidades que transmitem informações estatísticas”, explica o físico Juan Pablo Neirotti, da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade de Aston.
Segundo o professor, a chave do modelo está em identificar componentes que ajudam a explicar o comportamento emergente. Essa abordagem foi combinada com teorias de redes neurais para modelar os mecanismos de formação de opinião e alianças no Congresso brasileiro, detalhando o processo que levou ao impeachment de dois presidentes: Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff.
Congressistas como agentes políticos
No modelo desenvolvido, os congressistas são representados como agentes processadores de informações, influenciados por fatores como popularidade presidencial, alianças políticas e os custos associados às suas decisões. Esses fatores foram mapeados em diagramas de fases, uma ferramenta matemática que ajuda a identificar estados de equilíbrio ou instabilidade no sistema político.
Segundo Nestor Caticha, professor do Instituto de Física da USP e coautor do estudo, a análise revelou como mudanças nos índices de apoio legislativo e na popularidade presidencial podem levar a diferentes fases no Congresso. “A probabilidade é a maneira matemática de lidar com as incertezas. E a mecânica estatística apresenta técnicas para encontrar as variáveis agregadas e depois analisar o comportamento. O interessante é que essas variáveis agregadas, que os físicos chamam de parâmetros de ordem, às vezes apresentam mudanças drásticas de comportamento”, afirma Caticha.
A pesquisa contou com a colaboração de Glauco Peres da Silva, economista e professor do Departamento de Ciência Política da USP, que ajudou a selecionar votações legislativas significativas desde 1989. As trajetórias de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Collor foram analisadas.
Popularidade, crise e impeachment
Um dos principais achados do estudo é que o Congresso opera em diferentes fases, dependendo da popularidade do presidente e das alianças políticas. Em cenários de baixa popularidade, surgem duas fases principais: apoio ou oposição clara ao presidente. Já em níveis críticos de popularidade, aparece uma terceira fase, chamada de coexistência, onde alianças são mais dinâmicas e partidos menores desempenham papéis decisivos.
“A hipótese primária para interpretar o comportamento observado é que a Câmara legislativa do Brasil, com seu número relativamente grande de partidos políticos locais, opera em um estado que promove o diálogo. Nem o partido no poder nem o principal partido da oposição têm assentos suficientes para impor uma posição monolítica contra o Executivo, necessitando de negociação e colaboração com outros partidos”, explica Neirotti.
Essa dinâmica foi observada nos governos de Fernando Henrique e Lula, que permaneceram na fase de coexistência durante seus mandatos. Em contraste, Collor e Dilma ultrapassaram os limites críticos, entrando em zonas de instabilidade que culminaram em seus impeachments. “Collor cai, ele entra na parte branca do gráfico que é a região do ‘contra’. O Fernando Henrique bate na trave duas vezes; o Lula fica dentro [do espaço de coexistência, representado pela cor amarela], e do Bolsonaro só tínhamos dados parciais. Não coloquei [no artigo], mas ele também fica navegando nessa região, como o Lula e o FHC”, detalha Caticha.
Diagramas e análise de fases
Os diagramas de fases desenvolvidos no estudo mostram como fatores externos, como crises econômicas ou escândalos políticos, influenciam o comportamento do Congresso. À medida que o sistema evolui, ele pode cruzar limites de fase, entrando em estados de ruptura política. “Nos itens b [direita superior] e c [esquerda inferior], que correspondem às trajetórias de FHC e Lula, ambos permanecem dentro da fase de diálogo ao longo de seus mandatos, apesar de FHC enfrentar um momento particularmente precário em 1º/6/2001. Em contraste, Collor de Mello e Dilma Rousseff [painéis a e d] saíram da fase de coexistência e entraram em uma fase marcada por baixos índices de aprovação na Câmara. Ambos acabaram enfrentando o impeachment”, afirma Neirotti.
Além disso, a pesquisa ilustra como a mecânica estatística ajuda a identificar parâmetros-chave no comportamento político. “Se tivéssemos confiado em modelos tradicionais, como spins [em que as partículas não interagem entre si], a fase de coexistência não teria sido identificada, e o poder explicativo do modelo teria sido perdido. Isso demonstra como a mecânica estatística não apenas ajuda a determinar as propriedades mínimas que os componentes do sistema devem possuir para explicar fenômenos observados, mas também identifica os parâmetros-chave que carregam poder descritivo”, conclui Neirotti.
Relevância e futuro da pesquisa
A aplicação da mecânica estatística à política é um campo emergente, com potencial para transformar a análise de sistemas sociais complexos. “Há uma tradição para a criação de modelos na sociologia. Agora, as redes neurais trazem um novo ingrediente de complexidade que permite descrever algumas situações de interesse no estudo de sociedades. É completo? Não é. É a última teoria? Não. O próximo passo é interagir com cientistas políticos para que eles possam aprender a usar essa ferramenta e tentar extrair dados mais precisos”, diz Caticha.
A pesquisa também sugere que a abordagem pode ser expandida para estudar outros contextos políticos e sociais, ajudando a prever pontos de ruptura em sistemas complexos. Embora ainda haja limitações, os resultados mostram como a física pode oferecer ferramentas valiosas para a compreensão de fenômenos sociais.
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