Um estudo recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou um dado preocupante: quase 8% dos processos de adoção de crianças no Brasil são desfeitos. Entre janeiro de 2019 e outubro de 2023, foram analisados 21.080 casos de crianças e jovens em guarda provisória, dos quais aproximadamente 1.666 tiveram seus processos interrompidos, representando um índice de 7,9% de interrupções.
A pesquisa, inédita, baseou-se em entrevistas com equipes de unidades de acolhimento, representantes do Poder Judiciário e dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). O estudo destaca o impacto emocional e psicológico nas crianças envolvidas, que frequentemente experimentam sentimentos de culpa, tristeza, baixa autoestima, depressão e problemas comportamentais como agressividade.
O caso de Safyra: A história de Safyra, uma menina de 6 anos adotada em 2023 pela jornalista Leonor Costa, ilustra os desafios do processo. Safyra já havia passado por dois abrigos e uma família acolhedora antes de ser adotada. Uma pretendente anterior desistiu do processo após um mês de convivência, deixando a menina em situação de vulnerabilidade, com o risco iminente de retornar a um abrigo. “A Safyra já a estava chamando de mãe”, relata Leonor à Agência Brasil. A intervenção de Leonor evitou que Safyra sofresse esse retorno traumático. “A gente já mudou o nome”, diz Leonor, orgulhosa, ao mencionar o nome completo da filha. “Deu certo. Estamos com ela já tem um ano. Agora saiu a sentença, ela já é nossa filha perante o Estado. Ela já tem a nossa certidão, já é nossa filha definitivamente”, comemora a mãe. Leonor também menciona que Safyra é neurodivergente, necessitando de acompanhamento terapêutico para diagnosticar se apresenta autismo, deficiência intelectual ou TDAH. “Agora ela está supertranquila, mas ela era uma criança muito agitada”, descreve Leonor. “A moça não conseguiu, disse que não ia dar conta, ela é sozinha. Eu não condeno”, conta sobre a experiência da pretendente anterior.
Outro caso: A secretária aposentada Débora Teixeira Alli também compartilhou a experiência de sua filha Alessandra, de 22 anos, que foi devolvida por uma família adotiva aos 3 anos de idade. A experiência resultou em um trauma profundo para Alessandra, que mesmo com a adoção por Débora aos 6 anos e meio, ainda apresenta sequelas emocionais. “Isso causou um trauma enorme na Alessandra”, constata Débora. “Ela achava que se eu ficasse brava, eu iria devolvê-la”, conta. “Na porta da escola, por exemplo, ela vinha correndo, com medo de eu não estar lá”, acrescenta.
Análise dos perfis: O estudo do CNJ analisou os perfis das crianças cujos processos de adoção foram desfeitos, comparando-os com os das crianças adotadas com sucesso. Algumas tendências foram observadas: crianças com mais de 5 anos (54,1% dos casos desfeitos contra 22,7% dos casos de adoção), crianças com deficiência mental (4,4% contra 2,5%), e crianças que necessitam de medicação contínua (17,3% contra 7,5%) foram mais propensas a ter seus processos interrompidos. Em relação à raça, crianças negras representaram 68% dos casos de processos desfeitos, enquanto 59% das crianças adotadas eram negras. Uma equipe técnica de psicologia destacou que: “Se tiver transtorno mental, alguma deficiência intelectual ou algum nível de autismo, isso é um fator que pesa e que as famílias não conseguem sustentar esse desejo da adoção de crianças com esse perfil.”
A pesquisa também analisou casos de reversão após a adoção se tornar definitiva (139 registros em 17.946 casos, ou 0,8%). Mesmo com a legislação brasileira considerando a adoção um ato irrevogável, o estudo destaca que o Juízo da Infância, em certos casos, atende a pedidos de reversão, priorizando o bem-estar da criança. O estudo destaca que a proporção de adolescentes com mais de 15 anos entre os casos de adoção revertida é significativamente maior (46,2% contra 9,4% das adoções concluídas com sucesso).
Recomendações: O CNJ recomenda a padronização na avaliação dos pretendentes à adoção, buscando identificar expectativas irreais e falta de preparo para lidar com os desafios. A promoção de programas de troca de experiências para profissionais envolvidos no processo e a criação de programas de suporte psicológico e emocional para crianças que passam pela experiência da devolução também são recomendadas. Leonor Costa enfatiza a importância de “compreensão do que está por vir. É importante saber que tem dificuldade, seus desafios”. O coordenador acadêmico da pesquisa, Julio Adolfo Zucon Trecenti, ressaltou a necessidade de um protocolo mínimo com “alguns quesitos a serem observados”, para basear a decisão de preparar ou não um pretendente para a adoção. O estudo do CNJ aponta que “a rede de proteção ainda não oferece suporte psicológico e emocional que é essencial para crianças e adolescentes que são devolvidos em processo de adoção”. O estudo salienta que “é fundamental investir na criação de programas e projetos específicos para oferecer suporte psicológico e emocional a esses indivíduos” e que “esse acompanhamento pode ajudar a criança ou o adolescente a lidar com o trauma, a reconstruir sua autoestima e a desenvolver mecanismos de enfrentamento para os desafios futuros”.
O estudo completo do CNJ está disponível em este endereço e a gravação do seminário online de apresentação pode ser acessada em este link.
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