Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos. As obras serão publicadas semanalmente as terças-feiras. Na sexta publicação da série Nova Amsterdã, o conto apresentado será: O Sétimo Portal.
AVISO: horror, gore, linguagem explícita, morte, violência.
1
LÍVIA MORAES FUNGOU. Em seguida, um som rouco pesado emergiu dos pulmões até se debater na garganta e saltar pelos lábios velhos melados com molho de frango assim como os dedos esguios de unhas descascadas. A mulher realmente fingia ouvir o que a amiga sentada na poltrona ao lado dizia, mas os olhos permaneciam grudados na tela da televisão onde as manchetes do jornal local anunciavam as notícias do dia.
Morava em Cohabinal, um bairro de Parnamirim, e a coisa mais chocante em todos os anos que morava ali foi Maria ter colocado o marido para fora de casa aos gritos e ponta pés ao descobrir que ele tinha uma amante e que era praticamente casado com a outra também. Lívia não se considerava fofoqueira, isso jamais, porém era curiosa e se algo acontecia em seu bairro ela queria saber, até porque gostava da paz do lugar e não queria que qualquer coisa a abalasse. Quando mais nova, se tivesse ficado sabendo de algo como o que aconteceu na madrugada daquele sábado, teria corrido até o local, mas agora, com o passar dos anos e o problema nos ossos ficava difícil se locomover, ainda mais em um clima frio e chuvoso, por isso se acompanhara de um balde de frango frito com molho, a televisão e sua vizinha Abigail Franco.
— Vão falar agora. — Indicou a televisão com um aceno, fazendo Abigail parar de falar dos netos que eram rebeldes e que, se vivessem nos tempos em que ela era jovem, não se comportariam daquela maneira vulgar. “O mundo está perdido”, repetia a cada fim de frase.
— Finalmente, passamos o dia esperando por alguma notícia. — Reclamou tomando mais um gole do café ainda morno.
No vídeo a repórter estava de pé diante dos portões da fábrica desativada onde carros de polícia assim como SAMU e ITEP estavam presentes e vários profissionais trabalhavam com afinco. A mulher em um terninho azulado e cabelos pretos na altura dos ombros não revelou mais informações do que as que ela sabia pelo boca-a-boca da vizinhança, isso deixou Lívia chateada.
Ainda estava chocada que o garoto risonho chamado Felipe Oliveira que morava duas ruas antes da sua tivesse subido até o alto da caixa d’água da fábrica no meio da noite e pulado lá de cima. Desde que se entendia por gente não conhecia alguém que acabou cometendo suicídio, por todas as questões religiosas Lívia mantinha a cabeça cheia e funcionando como uma locomotiva antiga que demorava para chegar aos 100% da potência.
— Tão novo… — Deixou escapar junto de um suspiro, havia assistido aquele garoto crescer brincando com os outros nas ruas largas de Cohabinal — tão idiota…
— Ainda acho que deviam reforçar a segurança nesse lugar, os muros são muito baixos, qualquer um pode pular. — Apontou Abigail ainda com os olhos focados na televisão.
Nós não, a outra pensou, mas o que disse foi:
— Faz treze anos desde que a fábrica foi fechada e deixaram tudo as moscas…
— E aos matos. — Riu de sua própria piada. – Aquilo lá deve ter um matagal na altura da cintura e todos aqueles pavilhões abandonados, pela Santa Virgem, tenho arrepios só de lembrar.
— Verdade, se aquele acidente horrível não tivesse acontecido a fábrica seria a melhor coisa desse lugar.
Havia sim ressentimento na voz de Lívia Moraes, afinal, seu falecido marido tinha sido um dos mais de mil funcionários que foram despedidos depois que a fábrica de refrigerante foi mudada de cidade após o acidente que ceifou a vida de seis trabalhadores com uma máquina de corte. O bairro Cohabinal foi criado junto da fábrica no último ano da Segunda Guerra Mundial e grande parte dos moradores era de trabalhadores daquela empresa que estava revolucionando o mercado de bebidas em 1945 — uma febre entre os adultos, jovens e, principalmente, os soldados brasileiros e americanos instalados no estado do Rio Grande do Norte que era um ponto estratégico, mais tarde conhecido como Trampolim da Vitória.
— Ramalho disse que os pais do garoto estão inconsoláveis. — Abigail revelou, puxando Lívia de volta ao assunto.
Era normal para ela, naquela idade, se perder nas recordações, depois da morte do marido e dos filhos gêmeos terem casado e se mudado para Nova Amsterdã, Lívia se valia da companhia de seus programas noturnos, as velhas da vizinhança e o casal de periquitos que ficavam no jardim dos fundos, no quintal da casa de três quartos.
— É de se esperar que estejam. Ficar pensando que o único filho cometeu suicídio e não vai poder estar junto de Cristo.
Lá fora, a chuva começava a ficar mais pesada, deixando aquele mês de dezembro mergulhado em um clima cinzento e arrastado. Os baldes de frango das duas senhoras nas poltronas estavam vazios e, na televisão, o assunto agora mudara para um acidente de carro na BR-101, e na mente de Lívia ainda brotava o questionamento do porque aquela geração se empenhava tanto em não valorizar a vida.
2
A FORMATURA SERIA DENTRO DE QUATRO DIAS. Depois de muita discussão no conselho estudantil de pais e professores da escola Presidente Roosevelt onde Felipe Oliveira estudava, uma cerimônia foi organizada e chegaram ao acordo que a formatura seguiria como o planejado desde o início do ano letivo.
Diego Montenegro, por um lado, estava aliviado com a notícia sobre a festa de formatura, afinal, havia alugado um smoking caro para agradar a mãe e também a namorada. Mas o que rondava a cabeça naquela terça-feira era o desafio proposto pelos amigos. Eles não eram o tipo de moleques que se metiam em perigo só pela adrenalina ou qualquer coisa do gênero, ainda assim o desafio surgira antes do acontecido com Felipe na fábrica de refrigerante REFRESH e assim como aconteceu com a formatura, ele e os outros três optaram por levar adiante. “Não é o lugar que é perigoso, ele só resolveu fazer isso lá”, Pedro apontou durante a discussão, o suicídio que ocorreu na propriedade abandonada chocou toda a comunidade, mesmo os que conheciam o garoto apenas de vista, como era o caso daqueles quatro.
O desafio já estava lançado e todos concordaram em participar. Era simples: subir até o alto da caixa d’água da fábrica e beber o que quer que levassem. Básico? Sim. Idiota? Com certeza. Mas os jovens tinham disso, ainda que fossem dos mais tranquilos, continuavam impulsivos e desmedidos.
Fernando foi o primeiro a dar para trás uma semana antes, ele era crente nas histórias de assombrações que rondavam a REFRESH que, como toda boa construção abandonada, os moradores mais antigos contam que os espíritos dos trabalhadores que morreram acabaram ficando presos ali e levavam à loucura os que se arriscam a entrar lá durante a noite. “Foi isso que levou Felipe a fazer aquilo”, usou na primeira oportunidade. Dois dias antes da data marcada pelos amigos, acabou quebrando a perna caindo de uma árvore na fazenda dos tios, então, estava fora do desafio.
Diego junto de Pedro e o terceiro de sua trupe adolescente, JP, atravessaram o bairro às onze horas da noite. Não havia praticamente nenhum movimento nas ruas exageradamente largas, devido ao horário e por ser uma área residencial, passaram pela praça de lanchonetes fechadas, a quadra onde jogavam futebol nos fins de tarde vazia e as palmeiras velhas que sacudiam e uma dança silenciosa ao vento.
— Cuidado com a garrafa. — Diego advertiu JP que o fuzilou com um olhar.
— Você sabe que ele é um desastre ambulante. — Pedro soltou as palavras enquanto deixavam a praça e atravessavam a rua, mais um quarteirão e estariam no muro lateral esquerdo da fábrica.
— Ele está aqui, seus babacas. — O garoto de cabelo azul deu um par de socos nos ombros dos dois que murmuraram contragosto, arrumou a mochila com a garrafa nas costas e andou na frente.
Riram daquilo assim como quando souberam da perna quebrada de Fernando e quase acreditaram que tinha se jogado daquela árvore por querer. JP era espirituoso e normalmente o mais sentimental entre eles, com o cabelo azul e um sorriso no rosto que conseguia prender a atenção de qualquer um que falasse com ele, em contrapartida, Pedro era um raio, como dizia sua mãe, energético e hiperativo, do tipo que agir primeiro e perguntar depois, inclusive, foi dele que veio o desafio no último dia de aula.
— Vocês acham que lá tem sinal? — JP se virou assim que chegaram no quarteirão onde ficava a REFRESH.
— É um dos pontos mais altos da região, então… — Pedro respondeu, deixando as palavras morrerem quando os três pararam de frente para o muro branco.
Ainda que sendo uma propriedade privada, a fábrica depois de fechada ficou apenas ocupando espaço no Cohabinal, algumas vezes um carro era visto lá dentro, muitos especulavam que era alguém planejando reabrir o lugar, mas não passava de boato. Os muros tinham pouco menos de dois metros, depois de conferirem que eram os únicos na rua, os três pularam com facilidade aterrissando no mato alto do outro lado.
— Lanternas. — Diego disse já puxando o celular do bolso do moletom e os outros dois fizeram o mesmo.
Sentia o mato que chegava na altura do joelho roçar contra a calça jeans e quando seus olhos foram se adaptando ao ambiente escuro de baixa iluminação pôde destacar bem os coqueiros e cajueiros que cresceram no abandono, cuidados apenas pela natureza.
— Cuidado onde pisam. — Pedro alertou depois de sair na frente dos outros, os guiando terreno adentro.
Diego, enquanto andava, começou a ver ao longe o contorno da caixa d’água contra o céu negro e percebeu também que não havia nenhum som além do que eles estavam produzindo ao pisar em folhas e galhos secos. Isso o perturbou e fez um arrepio se espalhar pelos braços e pernas. Nada de animais noturnos, nem pássaros ou insetos, foi inevitável para ele não pensar em todas as histórias já ouvidas a respeito da fábrica.
Desejou que tivessem corrido mais risco e pulado o muro do lado direito da fábrica, pois a caixa d’água ficava exatamente naquela direção, em contrapartida era também o lado mais movimentado e seriam facilmente descobertos.
— Alguém quer desistir? — Deixou as palavras escaparem como um pensamento que ganha voz.
JP o olhou sorrindo, a lanterna do celular iluminando o rosto e o cabelo azul de forma fantasmagórica.
— Uma vez no inferno… — Pedro começou dizendo, mas não precisou terminar o ditado.
Os três riram.
Abrace o diabo.
— Vamos subir e depois passar na cara daquele idiota do Fernando que cumprimos o que dizemos. — Voltou a falar enquanto caminhavam com os celulares apontados para a frente.
JP trocou um olhar demorado com Diego, as sobrancelhas erguidas e a boca contraída em uma linha, uma expressão que dizia claramente: ou somos leais as nossas promessas ou idiotas o suficiente para cumpri-las.
3
DIEGO PASSOU A MÃO NO ROSTO, os dedos sentindo a barba contra a pele, em uma tentativa de espantar o sono que teimava em lutar junto ao cansaço diário e a tensão da situação. Os três estavam agora em um ponto central da propriedade, do lado esquerdo ficava a frente onde antes fora a entrada e agora tinha apenas um portão velho e enferrujado, do outro, se destacavam os prédios e blocos onde ficavam os escritórios, garagens e a produção com suas enormes máquinas, hoje, vazios de tudo isso, apenas um amontoado de tijolos e concreto.
O destino final deles agora estava completamente a vista, imponente como uma agulha branca contra o tecido escuro, a caixa d’água se erguia na altura de 27 metros com o logo da REFRESH desbotado no alto.
O primeiro pensamento que passou pela cabeça dele foi se ainda havia água lá dentro. Claro que não, idiota, para quê? Deixou isso se misturar com tudo o mais, apesar de ter crescido no bairro, Diego não era muito apegado à história local, conhecia o básico de cada coisa e não achava que isso fosse de grande importância, mas andando no meio da noite na fábrica abandonada tentava resgatar do passado qualquer informação que soubesse a respeito do lugar e como passou da maior fonte de renda da região para um fantasma do passado.
— Só de pensar em subir toda essa escadaria… — JP suspirou curvando os ombros, dividindo sua atenção entre os amigos, o caminho e também com o aplicativo de mensagens no celular onde ele estava falando com várias pessoas em conversas diferentes como só ele conseguia fazer com os dedos esguios e pálidos.
— Pense na recompensa. — Pedro gesticulou de maneira exagerada. — Vamos beber vodca tendo a melhor vista da cidade e, de quebra, entrar para a história daquela escola.
— Tecnicamente eu já entrei para a história da escola como aluno destaque de 2016. — JP sorriu, empinando o nariz, orgulhoso, chutando pedrinhas no caminho.
— Nerd. — Os dois disseram, riram e Pedro continuou: — Falo em ficar conhecido entre os estudantes, não os professores, pelo amor de Deus.
— Vamos, quanto mais rápido subirmos, mais rápido vamos embora. — Diego semicerrou os olhos tentando ter alguma noção do quanto ainda faltava para alcançarem a caixa d’água.
— Tá com medo do papai descobrir o quão rebelde o garotinho dele é? — Foi provocado.
Encarou o rosto bronzeado de olhos verdes e sobrancelhas grossas de Pedro que estava contorcido em uma expressão de malícia que já era habitual. Roberto Montenegro, seu pai, era policial e normalmente cuidava do posto policial de Cohabinal e também fazia as rondas. Para um homem na casa dos quarenta, Roberto tentava se conectar ao máximo com o filho e seus gostos adolescentes, ainda assim Diego sabia que ele desaprovaria completamente o que estava fazendo agora.
— Só não gosto de mentir para ele. — Disse, afinal.
— Não é como se estivéssemos cometendo um crime. — Pedro desdenhou.
— Tecnicamente estamos sim, isso é invasão de propriedade privada. — JP rebateu, dando de ombros.
— Ótima hora para não falar.
Diego sempre andou na linha, normalmente não era de se meter em confusão e isso deixava seu velho orgulhoso, mas continuava sendo adolescente e ainda assim havia fumado um ou dois cigarros, ficado bêbado uma porção de vezes, perdido sua virgindade com uma colega de classe e até mesmo beijado outro cara na festa de aniversário do ano passado.
Logo eles chegaram aos pés da caixa d’água e, de lá, ela parecia maior e sinistra. Toda a pintura no concreto estava suja e desbotada, no alto, onde antes havia o nome da fábrica, constavam apenas as letras R F ESH. A escada ainda estava firme e o corrimão, enferrujado. Subiram a escada em silêncio até JP começar a cantarolar Stairway To Heaven da Led Zeppelin como um pequeno mantra agradável em meio a quietude do lugar. Com isso em mente, Diego se atentou novamente e apurou os ouvidos, mesmo assim não havia som algum além das palavras do amigo.
O tempo que levaram para atravessar o terreno somado ao de subir até o topo resultava em mais de quinze minutos com certeza, tentou evitar ao máximo olhar para baixo, qualquer um, mesmo que não tivesse medo de altura, ficaria em dúvida sobre continuar o caminho sem nenhuma segurança ou voltar à terra firme.
Se não fosse a preparação física do futebol que praticava desde muito novo, tinha certeza que estaria mais cansado como, por exemplo, JP que respirava em um descompasso quase irritante, exagerado e dramático. Mas os três alcançaram o topo, era todo de concreto, deixando apenas uma porta redonda e pequena de metal que dava acesso ao interior vazio da caixa d’água, sentaram sentindo o vento mais forte naquele ponto e por sua mente passou rapidamente a ideia de ser derrubado por ele, riu daquilo.
— É dessa vista que estou falando. — Pedro puxou a mochila de JP e tirou a garrafa de lá.
— O que fazemos agora? — JP mantinha o celular em mãos enquanto tirava uma foto da vista e mandava para Fernando com a legenda: Perdeu, idiota!
—Sentamos, bebemos e apreciamos essa vista como os caras mais fodas daquela escola. — Pedro puxou a garrafa para fora da mochila ao lado e arrancou o lacre, puxando a tampa e dando um gole longo na vodca e sacudindo a cabeça. — Woohoo! Essa é das boas.
Diego pegou a garrafa e também, bebeu, passando para JP em seguida, ainda assim seus olhos se mantiveram fixos por um longo tempo na vista noturna. Ao longe a lua e o céu estrelado, logo abaixo vinham os telhados das casas e prédios intercalados com o topo das árvores que eram mais velhas do que metade da população do bairro.
Quantas pessoas haviam no bairro? 3000, 4000, imaginou que fosse algo entre esses dois números, se esse era o número de pessoas então quantas histórias se escondiam debaixo daqueles telhados avermelhados e sujos? Quantos segredos que não eram divididos nem com o travesseiro? Por um momento quis ser um mosquito e espiar toda a situação de cada um deles, então lembrou que sua situação em casa não era das melhores. Apesar do bom relacionamento com o pai, entre a mãe e ele era totalmente o inverso, mas apenas dentro de casa, porque fora eram uma família modelo tradicional como várias outras, mantendo os esqueletos no armário bem escondidos.
— Fernando está com inveja. — JP riu infantilmente, daquela maneira em que deixava à mostra boa parte dos dentes pouco amarelados pela quantidade grande de café que tomava.
Os três olharam para o celular na mão de JP onde estavam mais de sete mensagens seguidas enviadas por Fernando se lastimando por não estar com eles.
— Ele tá mentindo, diz isso porque sabe que não pôde vir, porque se pudesse, não viria de qualquer forma. — Pedro soltou o comentário entre um gole e outro.
— Estamos no topo da porra do mundo! — Diego gritou rindo contra o vento da noite, a voz ecoando minimamente pelo ar e se dissipando depois de atingir aos três.
Riram daquela maneira que faz o estômago doer e o corpo se curvar para frente, ergueram os braços em um sinal de vitória, sem se importar com a segurança àquela altura. A juventude aquela noite podia ser perdida em uma garrafa de vodca, eles até desejariam isso antes do dia amanhecer, até mesmo julgariam Fernando o mais esperto, mas a inocência burra da adolescência se perderia de maneira profana.
— O que é aquilo? — JP foi o primeiro a perceber e apontar.
Os outros dois se viraram para ver.
No lado sul da fábrica abandonada, por trás dos prédios velhos, uma fileira de carros escuros com as luzes dos faróis baixos entrava no lugar pelo portão sul — no passado usado para a saída dos caminhos carregados com litros e mais litros de refrigerante REFRESH.
— Diabos… — Pedro começou, mas Daniel o calou com um sinal e depois apontando para o chão.
Deitaram-se com a barriga contra o concreto da caixa d’água, as cabeças baixas, os olhos atentos e semicerrados. Os carros estacionaram em um círculo e quando as portas se abriram e seus ocupantes desceram um arfar triplo ocorreu, se entreolharam assombrados. Jamais deveriam ter saído de casa.
4
O QUE MAIS CHAMOU ATENÇÃO FOI A GAROTA DE BRANCO. Entre todo o grupo que desceu dos carros usando capuzes pontudos e pretos que deixavam apenas os olhos de fora e túnicas tão negras quanto a noite, uma garota vestia um tecido leve e branco, os cabelos caiam em uma cascata loira e a barriga deixava claro o estado avançado de uma gravidez.
O coração de Diego estava frenético no peito contra o solo frio, suas mãos estavam cerradas em punho, a circulação nos dedos impedida de seguir seu rumo. Não eram fantasmas, disso estava certo, ainda assim essa afirmação não diminuía seu medo.
Os três assistiram em um silêncio sepulcral um dos membros do grupo tomar a figura de branco pela mão e conduzi-la para dentro de um dos prédios, os outros os seguiram em duas filas como sombras espectrais.
Quando todos haviam sumido para dentro do prédio e apenas os carros restavam, Diego ouviu o suspiro tremulo e assustado de JP ao seu lado.
— Eu…
— Puta merda. — Pedro pareceu mais rápido ao conseguir encontrar palavras para se expressar. Os três voltaram a ficar sentados abandonando completamente a garrafa de vodca.
— Acredito que não foi algo da minha cabeça já que vocês parecem tão na merda quanto eu. — Diego piscava os olhos e os esfregava como se a qualquer momento fosse acordar coberto de suor entre os lençóis de sua cama, entretanto a única coisa diante de si eram os rostos pálidos dos amigos.
— Vamos embora. Agora. — JP tinha o cabelo azul jogado para a frente e os seus demonstravam o medo que Diego tentava disfarçar ao máximo. — Descemos em silêncio e pulamos o muro da frente que está mais perto, depois corremos para a minha casa.
— Quero ir até lá e ver quem são. — Pedro contrapôs.
— Você surtou? É claro que não vamos até lá. — JP o bateu no ombro, fazendo uma careta.
— Daria tudo por um cigarro agora. — Diego suspirou.
— Eu só trouxe um isqueiro, pensei que você trazia algum cigarro.
— Não, não. Faz tempo que não fumo.
— Será que eles são uma seita? Tipo os Illuminati ou algo do tipo?
— Pelo amor de Deus! — JP explodiu. — Qual o problema de vocês? Precisamos sair daqui, se aquelas pessoas, seja lá quem forem, nos virem, tenho certeza de que vamos nos ferrar. Eles não parecem fazer parte da equipe da boa vizinhança.
— Vamos descer. — Diego assentiu e pegou a mochila que antes o amigo carregava, colocou dentro a garrafa quase cheia e pendurou nos ombros.
Ao contrário da subida, a descida pelas escadas foi silenciosa e atormentadora, pois a todo momento eles desviavam a atenção dos degraus para o lugar onde os carros permaneciam estacionados como sentinelas à espera de ordens. Chegaram na base, o vento sacudindo o mato contra suas pernas os três pararam e se encararam com os celulares em mãos, mas nenhum ousou ligar as lanternas.
— O que vocês estão esperando? — JP os encarou por não estarem se movendo em direção ao muro mais próximo.
— Eu quero ir lá. —Pedro apontou com o polegar para trás.
JP se virou consternado para Diego e xingou ao perceber no rosto dele a confirmação muda com o outro.
— Vocês só podem estar de brincadeira, que babaquice é essa?
— Vai dizer que não está curioso? — Diego interveio.
— Curioso, sim, idiota, não. O que esperam de um grupo encapuzado em uma fábrica abandonada na madrugada? Um comitê de boas-vindas?
— Nós vamos. — Decretou Pedro, por fim.
— Vocês, para mim já deu. – JP saiu em direção ao muro, o celular em mãos e os passos pesados.
Diego o fitou. Os cabelos azuis se destacando contra a escuridão noturna, ele amava aquele garoto como um irmão. Já tiveram suas discussões e discordâncias antes, mas sempre acabavam juntos no fim, não eram assim os relacionamentos fraternos? Pelo resto dos anos que viriam depois daquela noite ele desejaria ter apoiado JP, terem ido embora e evitado o inferno que viria a seguir. Entretanto, Diego arrumou a mochila nos ombros, colocando as duas alças dessa vez e rumou na direção oposto, dois garotos perdendo a inocência.
— Não acredito que JP deu para trás, acabou sendo cuzão igual Fernando. — Pedro soltou as palavras enquanto eles andavam com os celulares em mãos ainda com a lanterna desligada, tentando adaptar os olhos ao escuro sem fazer muito barulho ou chamar atenção.
— Ele veio até aqui, cumpriu com o que prometeu e pronto. — Diego não quis ser ignorante, mas não pôde evitar as palavras diretas.
— Mas imagine como vai ser muito mais legal dizer que descobrimos uma sociedade secreta na REFRESH bem aqui no bairro onde nada acontece! — Exclamou, um sorriso sonhador no rosto, um delírio quase infantil.
— Fale baixo. — Disse e apontou para a frente.
Os dois alcançaram os carros vazios e escuros, eram de diversos modelos e anos e não deixavam nada de mais excêntrico à mostra. Aparentemente toda a estranheza havia ficado com os seus proprietários.
Do outro lado dos automóveis estava uma abertura onde um dia houvera uma porta e o caminho tremulava a luz de velas nas paredes, na esquerda uma placa de metal enferrujada e quase apagada anunciava que aquele era o prédio dos escritórios.
Uma frase saltou na mente de Diego e esse era o pior momento para lembrar a droga do livro que JP insistiu para que lesse: Deixai toda esperança, ó vós que aqui entrais. Essa era a escrita nos portões do Inferno quando Dante e Virgílio chegam na entrada.
Ainda assim, depois de um longo suspiro eles entraram, lado a lado, Diego com a mochila nas costas, a garrafa de vodca dançando lá dentro e Pedro conseguiu uma perna de cadeira de madeira velha semelhante a um porrete.
— Melhor prevenir. — Deu de ombros.
O ar parecia denso e as sombras projetadas nas paredes velhas e sujas pareciam se contorcer em uma dança ritualística. Diego nunca teve muito interesse em religiosidade, quem dirá rituais. Talvez o mais próximo disso que chegou foi o batismo quando era bebê na Igreja Católica do bairro e nem tinha lembranças disso, mas assistira filmes o suficiente para sua mente começar a produzir mil e uma imagens do que poderiam encontrar. Não queria se apegar a nenhuma delas.
Logo chegaram a uma antessala que se bifurcava em quatro corredores, uma em cada direção, como uma sala de espera. Não haviam mesas ou cadeiras, apenas fios soltos e tinta descascada nas paredes mofadas que faziam o nariz coçar. Eles vinham do corredor sul, então tinham três opções. Leste, oeste e norte. Mas a fileira de velas que os levou até ali só continuava no corredor ao leste, os outros dois estavam mergulhados na escuridão.
Fitou o escuro e sentiu todos os pelos de seu corpo se arrepiarem e a sensação de que deveria ter apoiado JP e seguido para fora da fábrica parecia estar presa como um caroço em sua garganta.
— Parece meio óbvio para onde devemos ir. — Pedro olhou o caminho iluminado.
Ao darem os primeiros passos nessa direção puderem ouvir murmúrios abafados vindos da última sala daquele corredor. Além dela, haviam mais quatro salas naquele corredor, todas as portas fechadas e Diego não tinha certeza de que queria saber o que estava por trás delas.
— Você está entendendo o que eles estão dizendo?
— Mais perto. – Pedro apontou e assim fizeram.
A porta estava entreaberta com descuido, claramente não esperavam que houvesse alguém ali além dele. Os garotos semicerraram os olhos e tentaram controlar suas respirações, não querendo serem notados em nenhum momento. E o que viram foi aterrador. Esperado? Talvez. Mas ainda assim chocante em diversos níveis.
Assim como o corredor, o escritório com plaquinha de metal enferrujada indicando “Escritório principal: Diretor Geral de Produção Flávio Santos” era iluminado por um enorme número de velas — que fez Diego pensar se haviam sido todas acesas agora ou era algo preparado com antecedência. As pessoas que viram entrar ainda vestiam as túnicas negras e se posicionavam em um semicírculo envolta de um homem em posição mais elevada e a garota de branco gravida estava deitada sobre um altar de pedra com os joelhos flexionados, como pronta para dar à luz. Atrás de todos eles, na parede, entre oferendas, flores roxas, velas e tigelas com o que aparentava ser sangue havia a imagem pintada detalhadamente de um vale avermelhado e estéreo, montado em um dragão vermelho estava uma criatura aterradora: o corpo musculoso se assemelhava ao de um homem no ápice da juventude, usando apenas um tecido envolta da cintura, um chicote de espinhos em mãos e sobre os ombros haviam três cabeças, a do lado esquerdo sendo a de um búfalo raivoso de olhar mortal, no direito um bode com chifres amarelados e contorcidos que com seus olhos amarelos mais parecia um sábio pensador e, no centro entre ambas, um rosto que parecia esculpido por mãos divinas, cabelos longos e loiros emolduravam a face cumprida e de traços marcantes com lábios avermelhados e olhos profundamente azuis.
5
ENTÃO OS SONS VOLTARAM. Só aí Diego e Pedro perceberam o quanto estavam focados no visual e esquecendo todo o resto, um cheiro forte chegou a eles fazendo os olhos lacrimejarem e as narinas inflarem e arderem. As pessoas de túnicas se mexiam em um movimento quase hipnótico enquanto uns faziam sons em uma língua desconhecida os outros faziam coro as palavras do homem em posição de liderança.
— Vem montado em Furorem, vem derramar tua sabedoria sobre nós, seja a chave do abismo, abre os caminhos. — O homem em destaque erguia as mãos e anéis dourados brilhavam sob a luz bruxuleante das velas. O coro continuava assim como os ecos. — Traz aos corações dos homens o teu fogo, o desejo e a clareza da alma. Tu que é o sétimo príncipe no sétimo portal e regente do Vale dos Ventos, filho daquele que reinou no paraíso e aguarda paciente no trono de glória.
Diego sentiu seus pés pesados como se tivesse grilhões presos aos tornozelos, a saliva na boca evaporara, um nó se formava na garganta e o suor já quase formava uma segunda pele. Não precisou olhar para o lado para saber que Pedro estava em situação semelhante, podia sentir. Nenhum deles conseguia desviar da cena aterradora.
— Asmodeus, nós o saudamos na Terra. Vem caminhar entre nós nas sombras da noite. Trazendo tuas armas: Violência e Luxúria. Vem e vê, ó Sétimo dos Sete, teu reinado está a tua espera.
Então a adaga foi erguida. Uma que ambos os garotos não haviam notado até aquele momento. Uma das sombras que ecoava a oração macabra se colocou entre as pernas da gestante que permanecia em silêncio, os olhos fechados como se dormisse um sono profundo agora, ergueu o tecido branco até abaixo dos seios dela, deixando a enorme barriga e as pernas expostas.
— Diante de nós está a tua serva que de bom grado ofereceu o corpo imaculado como portal para que possas vir a esse mundo em carne, poder e glória. — O condutor do ritual se posicionou entre as pernas da garota, uma outra sombra se aproximou trazendo uma das tigelas de sangue, o homem a tomou em mãos e derramou sobre a barriga. Então, após todos ficarem em completo silêncio, ele proferiu com ainda mais entonação: — Falamos diretamente com o Pai, aquele que brilhou nos céus e é a luz do Inferno e reina de Giudecca. Permita a vinda do último que anuncia tua libertação sobre os povos.
— Puta merd… — As palavras se perderam na garganta de Pedro, como uma alma perdida em um mundo ao qual não pertence mais.
A adaga cerimonial desceu em um corte horizontal, como em uma cesariana, mas sem nenhum cuidado com a mulher. O que quer que saísse de seu ventre seria fruto de uma violência desmedida. Porém, ela não gritou, ainda presa naquele sono profundo. O tom amarelado que antes inundava a sala foi ficando arroxeado à medida em que as chamas das velas ganhavam essa coloração.
O próximo som a rasgar o silêncio no ambiente foi o choro de uma criança recém-nascida, banhada em sangue e ainda presa ao portal que o trouxe ao mundo mortal através do cordão umbilical, ele foi erguido e recebido com saudações calorosas. As sombras erguiam as mãos e suas bocas repetiam como um mantra “bendito seja Asmodeus, Príncipe do Inferno”.
— Precisamos ir. Agora. — Diego coberto de suor e com as mãos trêmulas se afastou da porta.
Sua respiração era descompassada. Nada o teria preparado para aquilo, em toda sua vida, nenhum filme ou pesquisa. Se sentia sujo por ter presenciado a cena grotesca, onde sombras glorificam um bebê enquanto a mãe sangrava até a morte, com o corte exposto. Ali ela não era mãe, mas sim um portal, concluiu, rapidamente. O que havia acabado de testemunhar colocava todo o seu conhecimento a prova. Não era a pessoa mais religiosa do mundo, seus pais iam à missa no domingo, mas já fazia muito tempo que não os acompanhava. Era o tão famoso católico não-praticante, mas diante das palavras ditas pelas pessoas naquele cômodo, o nascimento brutal da criança e as chamas roxas, ele acredita, no mínimo, que havia um inferno e esse estava avançando sobre a Terra.
Não viram quando se afastaram da porta e começaram a voltar pelo caminho que a criança recém-nascida, ainda banhada em sangue agora não chorava, apenas com um de seus dedos gordinhos apontava para o lugar onde eles estiveram.
Ao passarem na frente da última porta antes de chegar a antessala, ela se abriu. Por um momento Diego não soube o que fazer, com olhos arregalados ele viu emergir da sala um garoto de cabelos azuis e sangue seco grudado nos cantos da boca e nariz, como se houvesse levado um soco.
— Entrem logo. — JP esganiçou no tom mais baixo possível.
Pedro e Diego não perderam tempo em se jogar para dentro do cômodo. As duas fontes de luz eram a lanterna do celular de JP e o brilho esbranquiçado e pálido da lua que entrava pela janela velha. Parecia um escritório menor, bem menor, talvez grande para um iniciante na empresa, haviam alguns papeis no chão, mas o mais importante é que haviam pedestais com velas apagadas e entre eles uma estrutura semelhante a uma árvore seca e retorcida onde no topo de seus galhos aninhava um livro grande e vermelho com um único símbolo em sua capa:
Olhando bem para JP em uma melhor luz, ainda assim precária, ele parecia perturbado. Insano, o rosto quase vibrava com o cabelo azul grudado na testa por sangue e suor. Será que ele viu algo pior do que o que vimos? Mas a pergunta que saltou de sua boca foi uma outra.
— O que está fazendo aqui?
— E-eu não queria… não queria estar aqui. — Respondeu com certa dificuldade, aquele olhar perdido e alucinado o estava agoniando. — Estava em cima do muro quando algo me derrubou, levei um soco na cara e-e… acordei aqui.
— Você acha que eles sabem que estávamos vendo tudo? — Pedro parecia alarmado com essa possibilidade. Dos três, era quem provavelmente sabia melhor disfarçar o que estava sentindo.
— Liguei para seu pai. — JP informou, ignorando a pergunta do outro, dirigindo o olhar a Diego.
— Porque você ligou para ele? — Não conseguiu esconder sua agitação. Não seu pai, tudo menos ele, já podia imaginar o desapontamento estampado no rosto marcado pela idade e profissão.
— Depois que acordei aqui, estava apenas amarrado e com o celular… – respirou fundo uma, duas, três vezes — consegui me soltar e seu pai era o único policial na lista de contatos…
— Porque não ligou direto para a central da polícia? O número de emergência? — Esbravejou.
—Só consegui pensar n-nele na hora. Desculpe. — JP curvou os ombros, envergonhado e assustado.
Diego se bateu internamente, entendia completamente o desespero do amigo, estava quase chegando ao mesmo ponto e no lugar dele provavelmente faria o mesmo, pegaria o celular e procuraria pelo número pessoal do pai, pedindo sua ajuda como fazia aos seis anos de idade quando não conseguia construir castelos de areia na praia.
Então os primeiros passos vieram e eles os ouviram no corredor com um assombro crescente.
— Eles sabem. – Foi o que JP disse.
Olhando ao redor em busca de algo que os ajudasse a mente trabalhando a mil por hora, como uma moto barulhenta em uma BR, livre de limite de velocidade, avançando a cada segundo. Empurrou o livro para o chão sem o menor cuidado e tentou arrastar a árvore retorcida, mas era pesada, Pedro se aproximou para ajudá-lo, mas só com os três conseguiram mover o objeto em direção a porta.
— Isso vai nos dar algum tempo. — Suspirou, limpando o suor do rosto com a mão fria.
— Não muito. — JP murmurou.
— Faz quanto tempo desde que ligou para o meu pai?
— Não sei. Não contei, mas ele estava nas redondezas, então já deve estar por aqui.
Diego assentiu, martelando na cabeça seus próximos passos.
— Vamos sair pela janela e correr até o portão da frente, provavelmente eles estarão lá.
— Assim espero. — Pedro concordou.
Então ouviram as batidas na porta e ela sendo afastada o suficiente para que pudessem ser vistos. Agora o jogo virara, eles eram observados.
6
AS SOMBRAS PARECIAM A NOITE EM FORMA FÍSICA. Elas batiam e empurravam a porta, a árvore retorcida os impedia de entrar, mas não por muito tempo. Diego e Pedro empurraram o que sobrou da janela para fora e o primeiro a passar por ela foi JP, os outros dois vieram logo em seguida.
Antes que pudessem correr em disparada pelo terreno, Diego foi parado por Pedro que o impediu.
— Abre a mochila. — Disse, os olhos tão loucos quanto os de JP, mas ainda assim, mais sãos.
— Quê?
— Tira a garrafa e me dá. Anda logo, Diego. — Apressou enquanto enfiava a mão nos bolsos em busca do isqueiro.
Quando estava com ambos na mão ele derramou parte da vodca perto da janela, na parte de dentro do cômodo e o resto jogou lá dentro, a estourando perto do livro no chão. Como em um filme onde a cena em câmera lenta começa a ser usada, o isqueiro foi aceso e solto sobre a bebida ao mesmo tempo em que as sombras invadiam o lugar em um turbilhão de tecidos e gritos alarmados.
— Fodam-se! — Pedro gritou enquanto assistia as chamas se espalharem numa velocidade assustadora, lambendo a vodca como um alcoólatra que ganhou um passe livre no bar. O garoto nunca ficou tão satisfeito por não ter terminado de beber uma vodca.
O fogo se espalhou pelas roupas negras enquanto as pessoas que as usavam tentavam proteger o grande livro vermelho.
— Vamos. — Diego puxou Pedro pela camiseta enquanto segurava o braço de JP que ainda parecia perdido.
Os três correram pela noite afora, sem realmente se importar com o mato batendo nas pernas e o vento contra o rosto, como um beijo bruto e frio, Diego sentia seus músculos doerem, os pés alternavam entre pesados ou suaves como uma pena. Naquele momento ele queria chegar ao portão da fábrica de refrigerante e encontrar seu pai pronto para resgatá-lo.
Podia ver ao longe agora o extenso muro branco e essa parecia a faixa de salvação, um pouco mais à direita estava o portão e ele literalmente chorou ao ver as luzes azuis e vermelhas da polícia se aproximando cada vez mais do portão. Aguente mais um pouco, logo vai acabar, você vai estar fora desse inferno.
As imagens do que havia visto naquele escritório o perseguiam, como se corressem junto deles. Não olhou para trás, temia estar sendo seguido, pois não achava que teria tempo suficiente para parar e se virar e a pressão em seus ouvidos o impedia de ouvir até mesmo os amigos.
Quando os três alcançaram o portão viram primeiro o carro da polícia e depois, Roberto Montenegro descendo do carro com um alicate grande com o qual quebrou a corrente que mantinha ambos os lados ligados e impedindo a passagem.
Diego fitou o pai que sustentou seu olhar por um momento que pareceu uma eternidade. Imaginou o quão ruim ele pareceria: suado, sujo e suspirando descontroladamente. Se era assim que o pai o via, não queria nem pensar o que ele havia achado ao desviar sua atenção para JP que havia finalmente cedido ao cansaço e caiu de joelhos com o rosto melado de sangue, lágrimas secas, fuligem e suor.
Não houveram questionamentos naquele momento. Outro policial estava no banco do motorista, Miguel Castro, lembrou o nome do parceiro de patrulha do pai enquanto junto de Pedro ajudavam JP a entrar no carro. Os três ficaram no banco de trás e seu pai entrou no de carona. Bateu a porta em um baque surdo e agora, com as sirenes apagadas, o carro partiu pela rua no meio da madrugada.
Diego não olhou para trás em nenhum momento, o nascimento grotesco do bebê que aparentemente trazia em si a encarnação de um mau imenso pairava toda vez que seus olhos se fechavam, pesados de cansaço.
Que Deus nos perdoe.
Pensou, distante, olhando para o lado e vendo JP encolhido entre ele e Pedro, queria perguntar o que havia visto para deixá-lo naquele estado. Mas desistiu, a voz morria junto das palavras em sua garganta e descia pesada contra o coração.
Que Deus nos perdoe.
Deixaram para trás a torre da caixa d’água da fábrica abandonada como um ídolo alerta observando a cidade que o adorava, esperando por seus sacrifícios.
7
NA DELEGACIA ELES FIZERAM UM PACTO. E essa foi justamente a palavra usada pelo delegado Ferreira depois de ter conversado com os três e agora estar reunido em uma sala com eles e seus respectivos pais.
Por mais que repetissem a história e houvesse alguns que acreditassem, eles estavam em maus lençóis. Invasão de propriedade privada, bebedeira e testemunhar um culto satânico que estava trazendo ao mundo um bebê demoníaco? Isso era muita coisa. Por Ricardo Montenegro ter uma boa relação com o chefe, o delegado resolveu que não levaria as acusações de invasão caso aquela história acabasse ali.
Os garotos protestaram, é claro, mas eram jovens apesar dos traumas. Entretanto, os pais estavam convencidos do acordo e contra eles não havia como lutar. Depois de ouvirem bastante sobre o mau comportamento que tiveram e o quão inconsequente eles estavam sendo foram levados para casa.
Já passava das duas horas da manhã.
— JP, o que… — Diego disse, enquanto esperavam pelos pais no banco de frente a sala do delegado Ferreira. — O que você viu? Porque estava na outra sala durante o ritual.
— Não deveríamos falar sobre isso. — Respondeu com o olhar ainda distante, como se continuasse visualizando algo que estava além da delegacia.
— Mas…
— Eu não quero falar sobre isso.
E o assunto morreu ali.
Depois daquela noite, ao serem levados para casa, nem Diego ou Pedro conseguiram muitas palavras de JP sobre esse assunto ou qualquer outro. A última vez que o viram pessoalmente o cabelo estava atingindo a altura do queixo e o azul permanecia apenas nas pontas, a cor castanha natural estava de volta, mas seu rosto continuava pálido e sem muita expressão.
Um mês após aquela visita, a mãe de JP entrou no quarto para deixar as roupas limpas e um grito gutural escapou de sua boca alarmando todos na casa ao encontrar o filho mais velho pendurado pelo pescoço em uma das vigas do teto, as calças sujas e o rosto azulado. Duas cartas foram deixadas, a primeira para sua família, onde dizia não conseguir mais conviver com o medo e os pesadelos depois daquela noite: Perdão, pai, mãe, sei que desapontei vocês, mas eu tenho que ir. A segunda, direcionada a Diego e Pedro, final e tragicamente, narrando os acontecimentos da noite: Eu vi o inferno, escreveu em uma letra apressada, não algo que julgamos ser ele, mas o verdadeiro, vi o Rei e seus Príncipes. Ele era terrivelmente bonito. O que quer que tenha me pego e levado para aquele escritório me mostrou o inferno e o que está por vir. A criança era Asmodeus, o Sétimo e Último. Espero que consigam continuar, mas os horrores que presenciei, eu não resistiria. O inferno é aqui e ele começou com esse nascimento. Lutem suas lutas, não fui capaz de resistir as minhas.
Pedro, décadas depois, perdeu a empresa, a esposa e a família assim como seus pulmões, devido um câncer alimentado por sua bebedeira e fumo. Morreu aos 40 anos em um leito hospitalar do sistema público após uma falência múltipla de órgãos. A última pessoa com quem falou foi ao telefone, quando depois de muito buscar, encontrou o número de seu velho amigo da época em que morava no bairro de Cohabinal, durante a adolescência. Eu nunca esqueci, Diego. Foi o que disse ao ser atendido. Eles passaram mais de uma hora falando sobre o passado, naquela madrugada, às três horas e quinze minutos o médico Jorge Felipo anunciava o óbito de Pedro.
Em 2055, Diego Montenegro era a testemunha viva. Já em uma idade considerável não pensava em abandonar seus projetos, nem se ocupava em ficar ligado a política ou esportes. Preferia se atentar aos programas sobre vida animal ou séries de sitcom que o faziam relaxar e rir depois de um dia de trabalho duro.
Entretanto, naquela quinta-feira de inverno, enquanto zapeava entre os canais um em particular o chamou atenção. O canal onde era exibido o jornal noturno nacional apresentava uma matéria a respeito dos candidatos com mais chances de ganhar o cargo de presidente do Brasil nas eleições do próximo ano de acordo com pesquisa popular. Observou por alguns instantes prestando atenção no que era dito sobre a vida dos candidatos.
A primeira era Patrícia Silva, 45 anos, uma carreira política estável e livre de escândalos, vinda de um dos partidos que mais haviam crescido nos últimos anos, suas campanhas, durante as eleições em que concorreu e ganhou para vereadora e deputada se apoiava em dois pilares: educação e saúde, sempre pregando que se ambos estivessem em bom funcionamento todo o resto entraria em ordem junto.
O segundo, Rafael Marks, 50 anos, filho de mãe brasileira e pai americano, a política era algo que corria em sua veia já que a família da mãe vinha de uma longa linhagem de deputados, prefeitos e governadores. Com uma parentela tão grande seu nome em algum momento se ligaria em algum escândalo, mas o que mais pareceu perigoso a sua carreira foram as acusações de caixa dois durante a campanha para segundo mandato como governador do estado de São Paulo.
O último apresentado foi Amós Deus, 35 anos, filho de um marceneiro e uma costureira que era especializada em roupas de casamento, seria o presidente mais novo na história do Brasil caso fosse eleito. Conseguiu ascender aos cargos políticos logo após a faculdade em uma velocidade assustadora. Muitos diziam que isso se devia aos contatos que fazia e que era a melhor pessoa em negócios, outros, no entanto, diziam que aquela era apenas uma parte dos seus talentos, esperto e aprendia rápido, assim como sabia agradar e se adaptar, tanto que era a aposta do partido do qual fazia parte. Com carisma havia conseguido a simpatia dos eleitores mais novos e incendiara o coração dos mais velhos com suas promessas, afinal, em seus poucos anos de política já cumprira grande parte delas — incluindo os projetos de inclusão social.
Quando o rosto de Amós apareceu na tela, traços equilibrados, cabelos loiros, olhos azuis profundos e um sorriso educado nos lábios vermelhos. Diego fitou a imagem assombrado, como se um fantasma do passado tivesse entrado em sua sala de estar e sentado no sofá ao lado. O homem na televisão discursava para uma multidão, como um pastor diante de um público pentecostal, mas sua imagem, na mente de Diego, era sobreposta pela recordação da pintura na parede do escritório onde havia testemunhado o ritual. Não havia um búfalo ou bode, mas a face angelical estava ali em um terno de risca de giz estranho para ocasião o deixando ainda mais altivo.
Diego era a última testemunha, mas lembrava bem, apesar dos anos, sua mente ainda trabalhava bem. Então ele estava vivo para ver o começo do fim. Não, se corrigiu, o fim começou naquela noite em 2017.
Ao deitar para dormir aquela noite ele sonhou com seus amigos e com o quão inocentes e inconsequente eram. Crianças querendo saber o que o vizinho escondia em seu jardim.