Beira-Mar, PT. II — Nova Amsterdã 13

Entre todas as coisas possíveis de acontecer em Nova Amsterdã, espíritos, fantasmas e criaturas ligadas a outros planos espirituais definitivamente tem seu espaço para se destacar nessa escuridão. Depois do prelúdio 3AM chegamos a uma história maior ainda dentro de Nova Amsterdã chamada Beira-Mar.

Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos.

4

A PRIMEIRA NOITE NA CASA PARA ELES COMEÇOU ÀS SEIS HORAS.

Edna sentiu um choque que atravessou seu corpo com violência e precisou se apoiar em Pedro para não cair assim que atravessaram a porta da frente daquela casa à beira-mar. Podia ver Adler e Ivana a encararem entre uma piscada e outra, até que seus olhos se fecharam e ao abrir não os encontrou ou muito menos o marido, o que estava diante de si nem mesmo parecia a mesma casa, os móveis eram muito antigos, em modelos que pareciam ter saído direto do catalogo dos anos 90 e se apressou quando encontro na parede ao lado da escada, logo abaixo de um grande relógio de madeira — no maior estilo colonial —, um calendário que marcava o mês de maio de 1990. A segunda surpresa após a data no calendário foi a presença de um garoto de bonitos olhos verdes que ela viu subir para o segundo andar onde ficavam os quartos. Sem pensar duas vezes, Edna o seguiu.

As paredes do corredor reproduziam o mesmo estilo do cômodo abaixo, seria fácil se distrair, ainda assim, ela se manteve focada e correu até a terceira porta do corredor. Abriu a porta e entrou, dando de cara com o mesmo garoto que havia perseguido pendurado pelo pescoço em uma corda grossa presa em um dos caibros. As calças molhadas e o rosto contorcido horrendamente, era uma visão desagradável para qualquer um com o mínimo de humanidade em si, mas ao dar atenção para a cama no canto esquerdo do quarto, próximo a janela viu um casal de joelhos sobre ela usando apenas calças jeans. A garota de cabelos escuros e curtos pegou a arma e colocou na boca, disparando. Em seguida, o namorado dela, com olhos repletos de lágrimas, sorriu tristemente, colocou a arma na boca e disparou.

O estrondo do tiro a empurrou , Edna sentiu tropeçar e cair para trás, fechou os olhos esperando o baque com o chão, mas suas costas atingiram outra coisa. Virou-se e encontrou Pedro a encarando com certa preocupação. Ao varrer o quarto com o olhar mais uma vez viu apenas uma cama coberta e um armário de madeira, além de Ivana e Adler.

— O que você viu? — A outra mulher mantinha olhar preso ao de Edna.

— Suicidas. Eles viraram Sombras.

Adler se arrepiou, lembrando do que aquilo significava, eram espíritos que se sentiam perdidos na hora da morte ou enlouquecidos. Sombras repetem suas últimas atitudes até o momento da morte em um ciclo sem fim e é perda de tempo tentar manter algum contato com eles, já que não respondem ou se quer se dão conta da presença humana. Sombras foram o motivo do último encontro que tivera com os amigos.

— Mas não são só eles que estão aqui. Há mais de um tipo de fantasma.

Edna sentia a força crescente na casa, as presenças começavam a se agitar com a chegada da noite. Olhou em volta e suspirou, sorrindo, por fim, ao perceber que os outros três ainda a encaravam.

— Podemos fazer uma sessão agora para termos um pouco mais de informações. Seriam úteis para montar tudo no livro. — Opinou.

— Só se você dirigir, sempre foi melhor com espíritos do que eu. — Ivana empurra a porta e sai do quarto. Os outros a seguem.

— Tem certeza disso, amor? — Pedro joga.

A esposa sorri na tentativa de tranquilizá-lo, claramente não era a primeira sessão dela e, por mais que ficasse exausta no fim de todas as que já dirigiu, as informações que podiam conseguir trariam mais detalhes para a história, afinal, as pessoas sempre estão sedentas pelo que há do outro lado ou o que os que estão do outro lado acham de nós sem se importa se isso será algo bom ou aterrador.

— Vamos fazer isso na mesa da cozinha, ela é menor do que a da sala de jantar e fica mais fácil de darmos as mãos. — Adler apontou para o cômodo seguinte quando chegaram na sala de estar.

Em pouco tempo, depois de limparem a mesa e acenderem algumas velas, os quatro estavam em volta de uma mesa pequena e quadrada. Pedro ligou o gravador e o colocou no centro da mesa, junto das velas acesas. Antes de darem as mãos ele se pronunciou:

— Arquivo número cinco. Trinta de abril de dois mil e dezoito. Estamos na Casa Assassina para uma sessão conduzida por minha esposa, Edna B, além dela, os participantes são: Adler Pinheiro, atual proprietário, Ivana Scartah, uma amiga, e eu, Pedro B. Estamos aqui em uma tentativa de contato para entender melhor o porquê os espíritos estão presos na casa.

— Deem as mãos e oremos. — Edna se pronunciou, todos seguiram o comando, fechando o círculo enquanto oravam em voz baixa. Depois de feito, a médium voltou a falar: — Estamos aqui para comunicação e compreensão, venham até nós e se mostrem.

No primeiro minuto nada aconteceu e sessenta segundos podem parecer uma longa hora em situações como essa, ainda assim não cederam os apertos nas mãos dadas, mantiveram a formação e Edna voltou a repetir sua frase. Então, tudo mudou: o ar se tornou pesado e o fogo das velas tremeluziu quando o cômodo começou a esfriar.

— Eles estão aqui. — Ivana se pronunciou encarando um ponto especifico atrás de Edna que se mantinha de olhos fechados.

Adler e Pedro fizeram o mesmo, mas nada viram. O que os assustou foi de repente Edna abrir a boca em um círculo perfeito e seus olhos abertos estarem completamente brancos e da boca, sem nenhum movimento de lábios, é derramada uma voz masculina desconhecida por eles:

— Vão embora antes que venha. — Era um tom arranhado, como se estivesse com uma séria crise de garganta inflamada.

— Tem um senhor de idade, cabelos brancos, pele escura, um pijama azul claro. — Ivana relatou para os dois homens que dividiam a atenção entre sua descrição e a cena assombrosa. Ela dirigiu a palavra ao fantasma. — Quem está vindo?

— Pensei que você soubesse… — Adler ergueu as sobrancelhas para ela sugestivamente.

— Está vindo… as asas, as asas, vão embora! — A voz se torna urgente e mais alta, Edna permanecia presa naquele transe sobrenatural.

— Diga o nome. — Ela insiste.

— Não há nome, é antigo, vários nomes, vários nomes…

O ar ficou ainda mais frio e um cheiro ruim inundou o ambiente em uma onda de podridão que atingiu todos eles no mesmo momento. O fogo das velas subiu dois palmos acima do topo da cera amarela como colunas de chamas e em seguida apagou, mergulhando o cômodo em uma baixa iluminação natural.

— Vamos embora. Agora. Ele está aqui.

Ivana levantou e sendo a primeira a romper o círculo pegou o gravador sobre a mesa, no mesmo momento Edna pende a cabeça para frente, logo sendo socorrida pelos dois homens. Os quatro se afastam da mesa e tentam caminhar em direção a sala de estar para alcançar a porta da frente, entretanto, ao chegar lá, estancam na no meio do caminho, pois da escada uma grande sombra alada se projeta.

— Porta dos fundos. — Adler os encaminhou de volta pelo caminho que fizeram.

A porta na cozinha se abriu antes que pudessem tocar na maçaneta, não questionaram, apenas se jogaram na noite enluarada.

5

PEDRO SENTIA O CHEIRO DAS FLORES POR TODO LADO. Isso poderia ser bom, porque estava fazendo com que toda a podridão que os atingira na casa não fosse mais sentida, só que na contramão disso, o perfume das flores naquele vento noturno o deixava enjoado.

Havia acabado de ajudar Edna (ainda cambaleante) a chegar no banco do carro estacionado na rua ao lado da casa à beira-mar e já se apressava para seu lugar no banco do motorista. Adler e Ivana estavam no banco de trás em silêncio. O motor do carro deu sinal de vida quando Pedro deu a partida e sem pensar duas vezes dirigiu até alcançar a rota principal que os levava a zona residencial daquele lado da cidade. A música no rádio começou a tocar e quando levou a mão ao aparelho para desligar Edna o impediu.

A música pareceu ter um efeito calmante sobre a esposa e isso acalmou a ele mesmo. Agora estava confirmado com certeza que não estavam lidando com uma simples entidade, a presença era esmagadora, conhecia de perto o que fantasmas podiam fazer com os ambientes onde estavam e até mesmo os demônios, mas naquele caso em especifico era mais que isso. Tinha uma ideia do que poderia ser, mas manteve o pensamento para si.

6

O BARULHO DO MAR A ATINGIA COM FORÇA TOTAL. Sempre foi uma amante marinha, gostava do poder renovador da água salgada em seu corpo e dos mistérios que as águas profundas podiam esconder, afinal, o ser humano conhecia mais o espaço do que as profundezas do mar. Mas naquele fim de tarde Edna não podia mergulhar e se entregar ao prazer das águas, apenas sentir a maresia tocando a pele exposta e o som das ondas quebrando na orla.

— Elas chegaram. — Pedro a avisou, puxando-a de seus devaneios.

Não se sentia completamente pronta para encarar o coven liderado por Ivana. Da última vez que havia visto a reunião sua mãe ainda era a líder do grupo que se nomeava Irmãs da Lua. Imaginou que Ivana assumiria aquele lugar já que desde muito jovem seguia os passos da mãe, então não foi nenhuma surpresa.

Edna caminhou de volta, subindo a escada de pedras ao deixar para trás a areia molhada da praia. No céu, o crepúsculo tingia as nuvens em tons de amarelo, laranja e vermelho. Seria apenas belo e não também sinistro se ele não marcasse o início das atividades sobrenaturais na casa logo acima.

Passou pelo portão e continuou se encaminhando junto a Pedro através do gramado em direção a varanda da casa onde Adler os esperava junto a um grupo de seis mulheres todas em trajes negros.

— Pretendem fazer o rito no interior da casa? Porque se for é melhor ser na parte dos fundos, para afastar possíveis curiosos, mesmo que sejam poucos desse lado da praia. — Adler perguntava para Ivana que era a única conhecida entre as mulheres.

— No interior onde há maior concentração da força. — Uma delas respondeu, mas Edna não conseguiu perceber qual.

— Vamos esperar até que a lua esteja completamente visível no céu para poder começar. — Ivana se precipitou tomando a frente do grupo trazendo em mãos uma bolsa média que Edna não sentia vontade alguma de saber o que tinha dentro. — Tem certeza de que tem forças para aguentar?

— Claro. — Ela respondeu rispidamente, odiava aquela falsa preocupação. É muito tarde para bancar a irmã mais velha, remoeu o pensamento.

Não demorou para o surgimento da lua no céu, mas o silêncio que recaiu sobre todos os presentes ali na varanda não foi nem um pouco confortável e todos pareceram felizes quando se encaminharam para dentro da casa, pelo menos por um segundo, já que o que estava para acontecer lá dentro não tinha nada de divertido.

Uma das mulheres, a que parecia mais nova entre as bruxas de preto, mexeu na bolsa de Ivana e começou a tirar diversos potes lá de dentro. Uma segunda desenhou um hexagrama no centro do cômodo depois que Pedro e Adler afastaram todos os móveis para os cantos. No meio do símbolo foi depositado uma bacia feita de madeira com entalhes que ela de imediato reconheceu como a escrita da antiga Arte. Nela foi derramada sangue da mão esquerda de Ivana Scartah, sal e água. Elementos de invocação, reconheceu de imediato.

— Isso vai atrair a força que está controlando os acontecimentos da casa e que está mantendo os espíritos presos aqui. — Ivana ressaltou. — Você já pode ligar seu gravador, Pedro.

— Não é um demônio e vocês sabem disso, digam logo que criatura é essa. — Edna disparou friamente contra o grupo que começava a se dispor uma em cada ponta do hexagrama.

— Use seu poder e descubra, irmã, seus instintos já apontaram o que é, não há motivo para drama aqui. Adler nos contratou para limpar o lugar e somos capazes disso, vamos fazer o que fomos chamadas para fazer, então você pode ajudar ou sair do caminho. — Ivana rebateu no mesmo tom fazendo a tensão aumentar no ambiente que já começava a se tornar sufocante só pela atmosfera do próprio lugar.

— Os espíritos estão inquietos, o melhor é começar agora. — A mesma mulher que desenhará o símbolo no chão falou.

— Sim. — A líder do coven concordou e todas elas puxaram sobre a cabeça um véu de renda preta e vermelha onde podia se perceber com sutileza um círculo ladeado por duas luas minguantes.

— Arquivo número oito. Primeiro maio de dois mil e dezoito. Estamos na Casa Assassina para o rito de invocação e expulsão da força que afeta a residência. O rito será conduzido pelo coven Irmãs da Lua e testemunha por Edna B, Adler Pinheiro, proprietário da casa, e eu, Pedro B. — O gravador foi colocado próximo de onde as bruxas se encontravam e plugado em um pequeno microfone que aumentava o alcance da gravação. Então, de mãos erguidas, em uma oração incompreensível para alguns presentes ali, as bruxas começaram o ritual.

7

A CRIATURA TEMIDA NÃO VEIO DE IMEDIATO. Quando o véu que dividia os mundos caiu devido o poder do Samhain, a sala era uma legião, pois os mortos estavam ali, de pé, com seus ferimentos mortais expostos. Nenhum movimento foi feito, eles apenas ficaram lá como se esperassem uma segunda ordem. Edna foi atingida pelas presenças e titubeou por um momento, a energia naquela sala era monstruosa.

Todos ficaram em silêncio, ela podia ver as expressões de Pedro e Adler em um misto de surpresa, medo e cuidado. Apenas a respiração dos vivos era ouvida, até que os fantasmas abriram suas bocas, escancaradas, e falaram em um coro satânico:

— Ele está aqui! — O coro repetiu como um mantra, fazendo arrepios percorrem os corpos humanos ali presentes.

Edna se manteve firme diante disso, mas não podia dizer o mesmo dos outros. Depois do anuncio feito os fantasmas se transformaram em uma violenta ventania que estilhaçou os vidros das janelas e derrubou uma das bruxas do hexagrama, jogando-a contra uma das paredes.

Agiu por impulso, não sabia se diante de outras circunstâncias teria coragem de fazer isso, mas ali estava ela arrancando o véu da cabeça da bruxa desacordada e colocou sobre si tomando o lugar dela na ponta vazia do hexagrama.

Não encarou a irmã, mas continuou e, passado o choque, pôde ver Pedro e Adler correrem em auxilio a mulher ainda desacordada na parede. Uma energia antiga, que ela só sentira uma vez em todos os seus anos de vida agora fluía em seus membros. Era pulsante, crescente e afetava sua mente a expandindo.

As lembranças a atingiram primeiro. Eram pessoais. A mão com longos cabelos presos em um coque saindo pela porta da frente com sua irmã mais velha e ela sendo deixada para trás com o pai por se acreditar não ter o dom da Arte. A bebedeira do pai que quando acontecia fazia com que ele a chamasse de “aberração” e a ameaçava com cigarros ou frigideiras quentes para queimar o mal que havia nela. Ele estava bêbado praticamente quatro dias por semana depois dos dez anos de idade dela. Edna reencontrou a mãe e irmã ao completar dezesseis anos, elas queriam que a mais nova se juntasse ao coven. Edna negou. O pai morreu antes da mãe e pouco depois que a filha mais nova se casou com Pedro B, abandonando o sobrenome Scartah e o passado no Rio Grande do Norte indo embora. Então…

(uma névoa embaçou as lembranças e ao baixar ela estava nas lembranças da própria casa)

… viu um homem de terno, alto e magro, se destacando de maneira errada com aquelas roupas contra a paisagem praiana noturna. Junto dele, uma mulher de cabelos dando sinais de grisalho presos em um coque alto, o acompanhava enquanto andavam em direção a casa. O que era conversado não podia ser ouvido por Edna, mas a cena a seguir a fez confirmar suas suspeitas e encaixar a peça final no quebra-cabeça de informações que Ivana tentava ocultar: a mãe estava ajoelhada no centro de um círculo que ficava dentro de um círculo maior. Invocação divina, concluiu, o Olho de Deus. Uma luz branca inundou o cômodo e depois foi reduzindo até que fosse apenas uma silhueta que consumiu toda luz e mostrou sua verdadeira forma…

(Edna sente um medo grande o preencher porque estava certa, afinal)

…que se estendia altiva com talvez três metros ou mais, o corpo todo coberto por um tecido branco fino que deixava o contorno de um rosto na parte superior visível e de dois buracos na parte de trás saiam asas e na frente dois por onde se expunham braços longos que seguravam uma lança curta de prata. Mas algo deu errado, o símbolo de invocação se inflamou em fogo. Errado, tudo estava errado. Edna sentiu aquele mundo de recordações girar…

(continue respirando, irmã, se mantenha firme, estamos quase lá)

…em todas as voltas ela se perdeu em flashes. Vendo as mortes que aconteceram na casa após o chamado feito por sua mãe por encomenda de Salomão Lima.

Despertou do transe de lembranças ao ser empurrada para fora do hexagrama e viu as outras bruxas também serem empurradas e, no centro, onde antes havia a bacia de madeira, estava a figura assombrosa que agora, nas mãos, lança e no tecido havia sangue espalhado, pingando no chão, a marca deixada pelo assassinato de todos os antigos frequentadores da casa.

— Ela está corrompida! — Uma das bruxas gritou ainda entrada no chão.

Com agilidade, a criatura girou na direção dela e em um movimento que não poderia ter sido impedido, transpassou a lança no peito da bruxa que apenas gemeu, surpresa e morreu em seguida. Com um leve sacudir, ela empurrou o corpo para longe de sua lança e a limpou no tecido que cobria seu corpo.

— Faça, Ivana, faça agora! — Edna gritou e teve a atenção da criatura banhada em sangue para si.

Praesidium. — A palavra reverberou pelo cômodo com uma carga violenta de energia que atirou mais uma vez as pessoas contra o chão e paredes. Edna não pensou em si de início, mas vasculhou o ambiente tempestuoso em busca de Pedro que agora ajudava Adler a levantar. Bem, eles estão bem, então submergiu em um sono atormentado por lembranças da difícil infância e do quanto crescera ressentida com a mãe e a irmã, do quanto chorava com medo de sua mediunidade e de tudo que testemunhou até entender o que realmente as coisas significavam. Fantasmas do passado vagam perdidos em minha mente batendo em todas as recordações que encontram. A última recordação que tem desse momento é a velha cratera, um sonho antigo que sempre tinha quando criança, haviam prédios destruídos e inúmeros corpos estirados no chão — alguns até mesmo despedaçados —, o céu pintado em uma coloração avermelhada, além disso apenas o silêncio pairava sobre os mortos. Sempre lembrava: ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, mal algum temerei. Mas ali, entre os corpos, estava a criatura coberta pelo manto e com sua lança atingia os mortos, tirando deles a alma, como se fosse o golpe final. De misericórdia. O beijo frio da lâmina da morte.

8

— ARQUIVO NÚMERO DEZ. Três de maio de dois mil e dezoito. Me chamo Edna Bartolomeu, médium e formada em jornalismo. Pedro não queria que gravasse agora, queria que descansasse um pouco mais antes de voltar ao trabalho. Foi desgastante e traumático, mas sinto que se não fizer agora, enquanto tudo está claro em minha mente, antes que o cair do véu leve todas as minhas lembranças daquela fatídica tarde.

“Diante do meu conhecimento pessoal, das recordações obtidas durante o rito e do estudo sobre essas criaturas, tenho total segurança de dizer que se trata de um azra’il, deus-cego, ceifador ou anjo da morte, como preferir. São encarregados de encaminhar as pessoas aos seus pós-mortes. O que pode soar estranho já que o ceifador invocado na Casa Assassina estava matando os moradores, então vamos ao melhor do que me recordo.

“Alessa Scartah foi chamada por um velho amigo, Salomão Lima, proprietário da casa na época, para fazer uma limpeza espiritual no lugar, já que a fama sobre as mortes bizarras começava a se espalhar. Ela atendeu o pedido. E invocou a criatura, pois muitos acreditam que com o poder certo é possível controlar uma dessas criaturas e fazê-la limpar o ambiente, encaminhando os espíritos a vida pós-morte. Não funcionou como esperado. Por algum motivo desconhecido por mim, o ceifador parecia não diferenciar vivos dos mortos e acabava arrebatando todos, criando uma energia negativa poderosa na residência a ponto de torná-la uma prisão espiritual.

“A casa está livre agora de qualquer entidade, mas ainda sem acesso completo, pois corre uma investigação a respeito da morte de duas pessoas durante o rito: Ana Carina e Ivana Scartah.”

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Antônio Gomes

Antônio Gomes

Colaborar do Dinastia N. Um amante irremediável da cultura pop em todas as suas formas. Escritor e leitor voraz. Seguidor fiel do mestre Stephen King e filho dos anos noventa, sendo o sonho conturbado da realidade que ainda está aprendendo a dar os primeiros passos, é fácil me encontrar comendo batatas, assistindo séries ou escrevendo alguma história com plot twist.