Amor Materno — Nova Amsterdã 05

Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos. As obras serão publicadas semanalmente as terças-feiras. Na quinta publicação da série Nova Amsterdã, o conto apresentado será: Amor Materno.

AVISO: drama, exposição, horror, gore, lendas urbanas, linguagem explícita, morte, violência.

1

NOVE HORAS DA NOITE E MIGUEL TINHA UM SORRISO LARGO NO ROSTO. Sabia que quando os pais encontrassem seu bilhete em cima do travesseiro iriam atrás dele e o deixariam de castigo por um bom tempo, mas estava ansioso demais com a notícia dada pelo melhor amigo, Joaquim, para esperar até a tarde do dia seguinte quando se veriam na escola, por isso resolveu correr o risco.

Sua esperança era voltar antes que dessem por falta. Mas isso era culpa dos pais, ele achava, mais cedo Joaquim o disse que havia ganhado dois jogos repetidos do novo Zelda no aniversário e resolver dar um para ele. Sua mãe disse que pegaria na escola porque já era tarde para o garoto andar por aí sozinho e eles estavam ocupados para ir junto.

As ruas estavam calmas e muito conhecidas por Miguel que cresceu correndo e brincando nelas, mas a noite elas eram menos movimentadas mesmo. Haviam carros estacionados na frente das casas, postes com luzes acesas, árvores balançavam silenciosas ao vento e seus passos com sandálias brancas — que esquecera de lavar depois do banho como mandado pelo pai — arrastando contra as calçadas. A casa de Joaquim ficava duas quadras à frente da sua, seguindo em direção ao centro, já havia feito esse trajeto várias vezes desde que começaram a estudar juntos, mas nunca naquele horário.

Era verdade que ficava receoso e uma pontinha de medo alfinetava o peito. Seu vovô contava várias histórias do porquê crianças não devem sair sozinhas, ainda mais a noite. Porém ele era muito crescidinho e não tinha medo do escuro, fazia dois anos que não usava luz noturna. Havia completado nove anos em janeiro. Quase um rapaz. Ah, a imprudência da inocência.

No céu, a lua parecia o sorriso torto daquele gato listrado que não lembrava o nome da animação de Alice no País das Maravilhas que assistiu com a prima.

Há uma quadra da casa de Joaquim, Miguel sentiu antes mesmo que pudesse ver. Um arrepiou desceu por sua espinha, como aquela gota de suor solitária após jogar futebol na aula de educação física. De repente se sentiu pesado, os pés mal se moviam, olhou em volta, os olhos atentos e curiosos procuravam por algo na rua Cândido Martins aparentemente pacata, mas a princípio nada encontrou.

Então veio o som. Um ruído como o farfalhar de folhas secas e quebradas junto ao do vento forte que só se ouve quando o carro está a mais de 60 km e você baixa o vidro da janela. Próximo de uma das árvores, onde antes não havia nada além do poste de iluminação, estava um ser de pé, alto e vestindo um sobretudo negro assim como um chapéu de aba redonda que jogava uma sombra sobre o rosto impedindo o garotinho de vê-lo. Ainda assim, o que mais chamou sua atenção foi o saco de tecido velho que trazia em mãos.

Em um click sua mente pareceu despertar para as histórias bobas do vovô. Miguel sabia o que aquilo significava, não era burro, o que precisava fazer era correr enquanto aguentasse, porém não sabia se voltava para casa ou ia até a casa do amigo. Eles se encararam, podia sentir o peso do olhar sobre si.

Tentou correr e não conseguiu e, ao forçar, acabou caindo, como se suas sandálias fossem feitas de metal. Sentiu as lágrimas se acumularem até escorrer pelas bochechas, mas quando tentou gritar pelos pais a figura noturna já estava sobre si, o empurrando para dentro do saco fétido e abafando seus pedidos de socorro.

2

REBEKA MAIA SE MANTEVE DEITADA FITANDO O TETO. Não queria olhar no relógio por mais que tivesse uma noção de que horas eram porque a confirmação só diria que estava atrasada e ela não tinha a mínima vontade de sair de casa naquele dia. Lá fora a chuva caia como se o céu chorasse a perda de todos os mortos desde que o homem alcançou o patamar de Homo Sapien.

Aos vinte anos ela trabalhava por seis horas e vinte minutos em um atendimento de serviço ao cliente. Seis dias por semana. Aquela quarta-feira era a folga e poderia se dar ao luxo de passar alguns minutos há mais na cama.

A casa parecia silenciosa. Nymeria, sua cadela, provavelmente estava aproveitando o frio para dormir na cama de Henrique, seu irmão mais novo, que àquela altura deveria estar na escola e a mãe no trabalho, então tinha todo o tempo do mundo. Ou algumas horas, apenas, mas ela prefere a ilusão.

Quando por fim levantou, espreguiçou-se e contraiu os dedos dos pés, espantando para fora do corpo o cansaço acumulado que parecia surgir em uma potência ainda maior quando ela acordava em um dia de folga. Vestindo um short surrado e camiseta com estampa de um velho cantor de rock já falecido, Rebeka arrastou o corpo para a cozinha. Torradas, ovos mexidos e café eram o resumo de sua refeição matinal.

Tentava planejar o que faria naquele dia, mas a mente simplesmente não entregava ideias mais animadoras do que passar o dia no sofá maratonando a nova temporada de The Crown. E foi exatamente o que fez até a hora de ir buscar Henrique na escola, normalmente ele viria sozinho da escola para casa, mas nos últimos quatro dias Parnamirim, região parte da Grande Nova Amsterdã, tem vivido em alerta.

Depois que a segunda criança desapareceu na noite de segunda-feira e o posicionamento da polícia diante da imprensa local foi rápido e pouco otimista, alguns pais decidiram que, por hora, era melhor manter os filhos na segurança de suas residências, temendo que a situação fosse semelhante ao que ocorreu em Nova Amsterdã, onde várias pessoas diferentes simplesmente sumiram e até hoje o caso não havia sido solucionado, deixando para trás especulações e teorias. Clara, sua mãe, achava aquilo um exagero, o filho não perderia aulas enquanto não houvesse um posicionamento contrário da escola, mas nada de deixar Henrique sozinho por aí.

Rebeka andava pelo bairro com um guarda-chuva tão colorido que era capaz de dar dor de cabeça para quem o encarasse por mais de cinco minutos. O município mesmo sob o forte temporal se mostrava vivo: carros, motos e transportes coletivos enchiam as ruas junto da água que escorria para os bueiros; nas entradas das lojas haviam tapetes grossos onde quem entrasse precisava limpar a sola dos sapatos — por educação e higiene, eles diziam; as calçadas eram divididas entre pedestres e ambulantes que protegiam a mercadoria com grandes pedaços de lona azul e cinza, como se aquelas fossem as cores oficias do comércio local.

Recordava que na época em que tinha seus oito ou nove anos de idade, as ruas eram tranquilas. As pessoas ficavam conversando sentadas nas calçadas após o jantar e os velhos jogavam dominó e damas na praça da igreja de Nossa Senhora das Graças. Ela brincava de esconde-esconde com a criançada do bairro e foi na rua também que deu seu primeiro beijo em uma dessas brincadeiras idiotas de garotas. Mas eram águas passadas, as águas agora eram turvas e cheias de riscos, os vizinhos ficam em seus sofás depois das refeições e os velhos se recolheram também, as crianças se mantem ocupadas com toda a nova tecnologia e não resta tempo para ralarem os joelhos brincando na rua. Os assaltos eram reais e outros crimes também, não só algo que ouviam no noticiário. Parnamirim estava crescendo, passando a ser um destaque ao lado da capital do estado do Rio Grande do Norte.

Parada em frente ao portão ela se juntava há um grupo de parentes que esperavam pelas crianças. Não evitou um sorriso ao ver o irmãozinho descer a rampa que ligava o portão principal ao saguão de entrada. Henrique Maia era magro e grandinho para seus dez anos de idade, no rosto infantil estavam estampadas as feições do pai, o nariz fino, as maçãs do rosto acentuados, um sorriso torto e olhos cor-de-mel que se destacavam contra a pele branquela.

Ele arrastou a mochila de rodinhas dos X-MEN e parou de frente para Rebeka. Ela o fitou achando engraçado a maneira como ele estava vestido na capa de chuva amarela.

— Essa chuva não para. — Henrique revirou os olhos daquele jeito que só as crianças conseguem fazer. — Odeio isso, não vou poder ir na casa do Jorge.

— Nem que estivesse fazendo um sol de rachar o coco você iria. — Ela o relembrou enquanto seguiam para casa, as rodinhas da mochila batendo contra as calçadas irregulares fazia um som quase completamente abafado pelo ruído urbano molhado pela chuva. — Lembra do que a mãe disse?

— Lembro. Mas isso é uma tortura, não gosto de ficar trancado em casa. — Resmungou.

— Diz isso agora, daqui a dez anos vamos ver se o seu eu adulto vai achar a mesma coisa.  — Riu dos bufos infantis que resmungava quando pisava em uma poça d’agua.

— O que eu vou fazer o dia todo?

— Dormir, assistir, jogar, não sei. Mas hoje você pode fazer o que quiser. Menos sair de casa.

— Dormir é uma perca de tempo.

— Novamente: daqui a dez anos vamos ver se vai achar a mesma coisa.

Da escola para casa, da sala para a cozinha, do almoço aos pratos na pia, ela agora estava deitada no sofá e vendo vídeos de stand-up no YouTube enquanto o irmão continuava sentado no chão brincando com Nymeria que se entregava sem resistência aos carinhos do garoto. Quando uma notificação do Instagram apitou no celular, ela logo clicou em cima e foi redirecionada para o aplicativo. Uma colega havia postado uma foto do último Happyday da empresa que trabalhavam (um dia temático onde os agentes se vestiam de acordo e, naquele mês, o tema era Floresta Encantada) e a marcou. Reagiu com uma curtida e comentou com uma piada nada engraçada.

Atualizou a página e as publicações dos amigos apareceram, entre elas, uma foto grande de Joaquim com um sorriso bonito estampando o rosto, mas a descrição tiraria a felicidade de qualquer um.

JOAQUIM ANTÔNIO ALVES

09 anos

Estudante da escola estadual Arnaldo Arsênio

Visto por último no dia 18 de outubro na calçada de casa

Junto disso haviam endereços e números de telefone pelos quais podiam entrar em contato a respeito de informações, até mesmo uma promessa de singela recompensa por qualquer informação que indicasse algum paradeiro.

Rebeka sentiu o coração pesar como se a Medusa o tivesse encarado e transformado em pedra. Tentava se colocar no lugar de Emília Antônio, mas jamais poderia imaginar como a mulher estava se sentindo com o desaparecimento do filho. Voltou os olhos imediatamente para Henrique, porque, se algo do tipo acontecesse com seu irmãozinho, ela não sabia qual seria sua reação, não sabia do que seria capaz para tê-lo de volta.

Ruas de Parnamirim, Nova Amsterdã, RN.

3

TODO MUNDO ESPERA ALGUMA COISA DE UM SÁBADO A NOITE, ao menos era o que dizia uma das músicas preferidas do seu pai e ela concordava porque também esperava algo daquele sábado mesmo achando que nada iria acontecer além do previsto. Catarina Meireles caminhou por, no máximo, dois minutos até alcançar a entrada da padaria local.

A mãe gostava de fazer brusquetas com queijo, tomates e carne para tomar com café sempre que a irmã dela resolvia aparecer com o filho. Carlinhos era um moleque de treze anos com uma dúzia de espinhas espalhadas pela cara e que não conseguia parar de fazer piadas babacas e se achar superinteligente por isso. A tia Lucia, por outro lado, era um amor de pessoa e por isso Catarina não reclamou quando a mãe a mandou comprar um pouco mais de queijo.

Cumprimentou o vendedor da padaria, além do queijo também pegou um achocolatado e voltou para casa com as moedas do troco balançando no bolso de sua jardineira.

Os sons que chegavam aos seus ouvidos eram os passos, o vento noturno quase inexistente soprando as folhas das árvores dos canteiros, o tilintar do dinheiro e a sacola de papel com as compras nos braços. Então ouviu um silvo crescente, de início não deu atenção, mas logo depois Catarina viu uma pessoa de pé, do outro lado da rua, a encarando. As roupas escuras e o chapéu não permitiam que ela conseguisse ver o rosto. Esfarrapado, essa seria a palavra que a mãe usaria para definir a figura que segurava um saco parecido com os que ela viu homens usando para carregar batatas na feira agropecuária de Parnamirim.

As advertências da mãe saltaram a mente: sei que não devia estar pedindo isso, sendo que tá tudo uma loucura na rua, mas estou dando de mamar ao seu irmão e logo Lucia vai chegar, é só uma ida rapidinha a padaria aqui perto. Não pare e se vir algo, corra. Foi o que Catarina fez: correu. Faltava pouquinho para chegar em casa, mas sentiu o corpo pesar e logo estava no chão por tropeçar nos próprios pés.

Uma sombra a cobriu como um eclipse, então viu a pessoa esfarrapada do outro lado da rua sobre si, tão próxima que podia ver o rosto de traços fortes e marcados, cicatrizes e uma barba por fazer, sobrancelhas espessas e olhos totalmente brancos com veias vermelhas, como se tivesse virado as írises para dentro da cabeça.

Catarina gritou, ainda ouviu a porta da sua casa abrir, mas quando foi envolta pelo saco que o homem esfarrapado trazia sentiu tudo à sua volta desaparecer como se estivesse caindo na escuridão do Grande Vazio.

4

VIVIANE ARTURES ERA UMA BELA VISÃO ATÉ PARA OS JOVENS. Os cabelos escuros caiam sobre os ombros, a pele era clara deixando os olhos escuros em destaque, alta e esguia, cabia bem em um jeans azulado e camiseta regata. Sobre a mesa do quarto da Pousada Maine — que havia alugado na noite anterior quando chegou no estado — estavam espalhadas armas de fogo e brancas, fotos, mapas e documentos diversos.

O pai havia dado aquele nome porque ela chorou alto demais ao nascer, anunciando sua chegada a plenos pulmões. Cheia de vida, era o significado. Sim, aos cinquenta anos ela não aparentava a idade que tinha nem mesmo tudo que havia passado durante sua vida que até os vinte e cinco anos parecia que seria como a de qualquer garota que engravida aos vinte.

Não era uma das sortudas, as marcas disso se escondiam debaixo das roupas, fora da vista dos outros, tão profundas que iam mais fundo do que a pele, estava em seus ossos, em seus órgãos, subindo e descendo em sua corrente sanguínea.

Uma guerreira, sobrevivente, não havia armaduras no século XXI, mas ela precisava se ver dessa maneira para continuar sua caçada. Viviane o perseguia há vinte e cinco anos, seguindo as pouquíssimas pistas que ele deixava escapar quando estava com preguiça de mais para encobrir.

Havia o encontrado por três vezes. Três vezes encontrou a morte e nas duas últimas ele a deixara ir por diversão, pois gostava da perseguição. Sabia que aquilo alimentava o desejo de vingança dela, afinal, tirara o seu bem mais precioso, o pequeno Nicolas. Viviane sabia a maneira como aquele homem desprezível levava aquilo — se é que ainda podia ser considerado humano —, mas estava disposta a ir até o fim e pretendia antes de morrer ter a cabeça dele em suas mãos.

A primeira vez que havia direcionado sua atenção para aquele estado no nordeste brasileiro foi no final do ano de 2016 quando uma série de desaparecimentos aconteceu, entretanto não se encaixava no padrão. Eram adultos, jovens e apenas um garoto “desaparecidos” além da alegação da presença de crianças de olhos negros. O perfil que procurava era diferente. Viviane só havia errado o ano e a parte do estado. Não era em Nova Amsterdã, 2016, mas sim Parnamirim, 2017.

Três crianças desaparecidas, dentro da faixa etária preferida por ele, não podia ser coincidência, mas a confirmação final foi o testemunho da mãe da última desaparecida, Catarina Meireles. A mulher foi quem trouxe a confirmação ao município de que realmente havia alguém levando as crianças, não estavam apenas desaparecendo como alguns achavam na delegacia.

“Ouvi o grito e sai com meu filhinho nos braços. Reconheci a voz, era da minha Ina, Ininha, mas tudo que vi foi uma pessoa alta usando um sobretudo e um chapéu esfarrapado. Sumiu levando um saco onde provavelmente estava minha filha”.

Isso foi o que saiu no jornal eletrônico, imaginava que não devia ter sido fácil tirar as palavras dela, afinal, sabia o desespero de uma mãe ao perder uma parte de si. Ouviu a recepcionista da pousada comentar com uma colega de balcão em zombaria que as pessoas estavam dizendo que o homem do saco estava solto na cidade. Se elas soubessem… mas as ignorou, eram jovens e tolas, no auge de sua felicidade quando nada importa além de seus próprios desejos.

Viviane quase podia sentir a presença dele na região se tornando crescente, até porque estava perto do sol se pôr, “a hora do vampiro”, como seu pai costumava chamar, e era a hora em que era permitido que ele saísse de seu esconderijo. Por isso, ela pegou as chaves do carro alugado, preparou a mochila com o que seria necessário para caso o encontrasse e saiu em direção ao estacionamento.

A mente, como sempre, focada em uma lembrança que jamais esqueceria: a felicidade no rosto do seu pequeno Nicolas no dia de seu aniversário ao ganhar um conjunto de fazenda (miniaturas de vários animais, cercados e carroças), ele havia passado a semana carregando a sacola com os brinquedos para todos os lados, até que, na semana seguinte, foi levado pelo Mal.

Viviane Artures

5

REBEKA COMIA EM SILÊNCIO. A comida estava quente, por isso, soprava o arroz de leite como fazia quando era criança, antes de levá-lo a boca. Havia acabado de chegar do trabalho, era quase meia-noite, Henrique já dormia e sua mãe estava tomando banho para também ir dormir, porém a garota ainda estava ativa.

Clara decidira que o filho não estava mais autorizado a ir à escola até que a situação com os sequestros estivesse resolvida, até lá, ela o ensinaria o que pudesse em casa. Rebeka tentou argumentar, apontando que todas as crianças desapareceram no período da noite e Henrique estudava pela manhã. Mas a Maia mais velha estava irredutível e não voltaria atrás, começando a ficar apreensiva também pelo horário que Rebeka chegava em casa, afinal, ela só saia do trabalho às vinte e três horas.

Ela estava assim desde que havia visitado Patrícia, mãe de Catarina, querendo saber sobre os filhos a cada dez minutos. Compreendia a preocupação, mas, como sempre, achava que a mãe conseguia ser bem dramática quando queria. Claro que era uma situação preocupante, isso era inegável, mas não podia parar sua vida por isso, o que podia fazer era se prevenir…

Antes que pudesse completar seus pensamentos foi interrompida pela velha cachorra Nymeria, uma golden retriever que estava na família há seis anos, que colocou a cabeça em seu colo pedindo por atenção. A garota levantou e foi para o sofá acompanhada pela fiel companheira que voltou a se jogar em seu colo, Rebeka atendeu e passeio com os dedos longos de unhas pintadas de preto em um cafuné gostoso.

Olhou para o quintal da frente, agora exposto apenas pela luz que vinha do poste da rua em frente à sua casa, fitando o muro branco e as madressilvas plantadas pela mãe que já subiam com os ramos nela no seu próprio ritmo. Ficou imaginando o que levaria uma pessoa em sã consciência sequestrar crianças e fazer mal a elas, ela esperava que a polícia conseguisse colocar as mãos em quem estava fazendo isso.

Eles precisavam fazer isso o quanto antes.

6

— EU VOU EMBORA. — Felipe disse durante uma pausa almoço de vinte minutos que eles tinham.

— Do trabalho? — Rebeka mordeu o sanduíche natural e bebericou do café sem muito gosto da máquina do corredor.

— De Parnamirim. Quero ir para outro país, tenho tios na Cidade do Cabo.

Ela pensou por um tempo, depois arregalou os olhos em surpresa.

— Isso é na África do Sul! — Exclamou em resposta, deixando de lado o lanche.

— Sim. — Felipe riu, os olhos se estreitando por conta das maçãs do rosto altas. — Eles me fizeram a proposta ontem quando nos falamos por telefone. Meu pai quer que eu vá assim como meu irmão, eles dizem que podem me ajudar.

Assentiu em concordância.

— Vou sentir sua falta, se realmente for. — Admitiu.

Felipe e ela haviam entrado juntos na mesma turma de treinamento na empresa e desde lá se tornaram, além de companheiros de equipe, também amigos. Ele era um garoto bonito e cheio de saúde no auge de seus 18 anos, mas maduro para a idade. As pessoas ao redor, ao verem sua proximidade, achavam que havia algo há mais. Puro engano, mas não havia como desfazer os boatos, afinal, uma mulher aparentemente não podia ter uma amizade íntima com um homem sem segundas intenções.

Foda-se o que eles pensam, era o que os dois diziam, como se fosse seu lema de vida.

— Não vou te abandonar, nem é para sempre. Vou manter contato com você, Beka. — Felipe a abraçou de lado, ambos sorriram, mas foi ele quem lembrou: — Nosso tempo está acabando, é melhor voltarmos.

Mais tarde, já na noite, Canções de Apartamento tocava em seu celular repetidamente nas últimas semanas, principalmente depois do expediente quando descia para a parada e pegava o ônibus que a deixava na esquina de casa. As músicas daquele CD, por mais que algumas vezes abordasse temas tristes, acaba sendo suave na melodia e isso a levava em um pequeno paraíso particular que ficava a um fechar de olhos de distância.

Boa parte das pessoas ali dentro era, no mínimo, reconhecível. Tinha uma das moças que trabalhava nos serviços gerais da empresa, a namorada de um vizinho que, pela farda, trabalhava numa livraria e vários estudantes que preferiam a noite como horário de estudo.

Manteve-se sentada com a cabeça contra a janela meio-aberta sentindo o vento noturno contra seu rosto, sacudindo os fios que escapavam do seu coque. O livro que pretendia ler durante a viagem descansava no colo com a capa vermelha e um homem por trás das grades representando um dos contos.

Desceu exatamente às vinte e três e meia na esquina de casa, onde agora era um lava-jato e antes, uma escola preparatória para quem queria ingressar no Ensino Médio nas escolas federais. Colocou a bolsa carteiro pendurada no ombro e se dispôs a caminhar.

7

HENRIQUE MAIA AINDA ESTAVA ACORDADO, apesar do horário. Como era sexta-feira, a mãe havia permitido que ficasse até um pouco mais tarde enquanto assistia uma maratona de Coragem, o Cão Covarde, na TV. Clara estava na cozinha terminando de lavar a louça que havia sido suja no jantar.

A campainha tocou uma, duas vezes, na terceira ele levantou ouvindo a mãe o advertir que olhasse pelo olho mágico antes de abrir, para ter certeza de que era sua irmã. Passou pela porta da frente, atravessou o pequeno quintal e chegou ao portão. O olho mágico ficava um pouco acima da sua cabeça e isso o irritava muito porque nem na ponta dos pés ele conseguia ver através da lente no portão de ferro.

Dando de ombros, Henrique, concluiu que àquela hora só podia ser sua irmã, então girou a chave no portão e puxou não encontrando nada além do vento noturno e a velha árvore do outro lado da rua sacudindo suavemente.

Colocou a cabeça para fora, fitando ambos os lados da rua, em seguida saiu, parado na calçada, estreitou os olhos e viu um ônibus parar na frente do lava-jato, viu um homem descer, depois uma menina, então Rebeka. Isso o fez esquecer, por um momento, que a campainha havia sido tocada e não havia ninguém lá.

— Henrique? — Ouviu a mãe chamar de dentro de casa, a imaginou enxugando as mãos em um pano de prato que prendia no avental florido.

— Rebeka desceu do ônibus, ‘tá chegando! — Respondeu, voltando sua atenção para a rua.

Depois disso, tudo aconteceu muito rápido. O primeiro som foi de sua mãe falando novamente, perguntando como ela ainda estava chegando se a campainha havia sido tocada, depois o farfalhar de folhas secas e galhos sendo quebrados, do lado da árvore e se destacando contra a paisagem urbana estava um uma criatura alta, imponente em um sobretudo escuro e chapéu que lançava sombras sobre o rosto e os ombros. Deu um passo para trás, olhou para o lado e viu a irmã correndo. As luzes de um carro acenderem. Pisadas fortes na sala de casa. Em seguida, o que quer que fosse que estava parado do outro lado, estava sobre si, o puxando com extrema força para dentro de um saco. Gritou, mas tudo era escuro, quente e seu braço esquerdo doía como nunca antes.

O último pensamento ao apagar por não aguentar mais as ondas de dor que o atingiam foi o rosto da irmã enquanto ela corria em sua direção.

O dito cujo Velho do Saco.

8

ELE ESTÁ DESESPERADO, foi o que veio à mente, quando, surpresa, o viu sair das sombras, tocar a campainha da casa e então retornar a escuridão. Uma parte sua se sentia tão monstruosa quanto ele por ficar ali, apenas assistindo, mas o lado lógico a dominou. O procurava a semanas e ali estava, prestes a levar a última criança daquela safra, como o mesmo havia dito uma vez, se conseguisse, levaria Viviane até as outras vítimas e poderia resgatar todas, se fosse esperta. Sorte era algo no qual não tinha mais idade ou vivência para acreditar.

Não demorou para que tudo acontecesse, o viu pegar o garoto e o jogar no saco, ligou os faróis e avançou com o carro o parando na frente da casa onde estavam as duas mulheres, uma vinda da casa e a outra da rua. A cabeça de Viviane borbulhava de informações e ideias, mas sabia que não conseguiria sozinha, a idade a atingia de forma cruel e mesmo movida pelos sentimentos, o físico ainda clamava por ajuda. Baixou a janela e fitou ambas perplexas paradas na calçada.

— Podemos tentar salvá-lo, mas precisam vir agora. — Disse e suspirou quando ambas apenas entraram no carro sem pensar duas vezes.

Via nas duas sentadas no banco de trás que as perguntas viriam a qualquer momento, estavam apenas chocadas, então resolveu se pronunciar antes:

— Estou caçando a coisa que levou seu filho. Ele levou as outras crianças também.

A mulher mais velha usava um avental florido e um vestido de alças, o cabelo solto chegava aos ombros e nos olhos expressava o conflito de sentimentos que ocorria dentro dela. A outra, mais jovem, vestia jeans, blusa e casaco em uma combinação de preto e cinza sustentando no rosto a mesma expressão da outra.

— Há algum lugar abandonado nas redondezas?

— Que merda é essa? E o que ele quer com as crianças? — Ouviu a mais nova rebater franzindo o cenho.

— Não é completamente abandonado, o dono aparece lá algumas vezes por ano, mas há uma construção na entrada da BR 101. — A mulher de avental sussurrou ignorando as questões da outra e respondendo à pergunta de Viviane em um tom trêmulo.

— Ele normalmente se esconde em lugares assim.

— Ele quem? O que era aquilo?

— Rebeka, espere. Ela vai falar.

—Como você pode ficar calma, mãe! — Rebeka explodiu, mas teve a mão apertada pela da mãe.

— Eu não estou calma, meu filho foi sequestrado e essa mulher pode encontrá-lo, então, é o que temos por hora.

Compreendia ambas as reações delas, haviam visto o garoto ser levado por uma criatura e agora estavam no carro de uma desconhecida indo há uma construção parcialmente abandonada próximo da meia-noite.

Um pequeno silêncio se instalou. Viviane não pediu direções do terreno, na última semana havia dado voltas e mais voltas pelas ruas e estava familiarizada com a maioria delas, então chegar a BR 101 não era tão difícil.

— O nome dele é Johan. — Falou, sentindo os ombros tencionando e seus olhos serem molhados pelas lembranças, mas Rebeka e a mãe tinham direito de saber, depois disso, era com elas acreditar ou não. — E ele é muito velho…

— Não parecia tão velho pela maneira como correu com meu irmão no saco. — Rebeka apontou.

— Há séculos deixou de ser humano e envelhecer como um de nós.

— Séculos? — A mãe repetiu a palavra, como se degustasse um doce exótico.

— Vai parecer uma loucura o que vou contar, mas é bom estarem cientes do que podemos encontrar lá.

— Meu nome é Clara e essa é minha filha Rebeka. — Apresentou no mesmo tom que vinha usando durante todo o tempo no carro.

— Essa é a quarta vez em que o encontro em vinte e cinco anos, na primeira, ele levou meu filho. De lá até hoje, venho tentando impedi-lo de continuar com isso. Ele chegou aqui vindo da Europa em 1900 e já era velho nesse tempo, foi quem deu origem a toda essa lenda do Homem do Saco, hoje usada para assustar as crianças, até que se deparam com o verdadeiro mal. — Fez uma curva sem se importar com o sinal vermelho, afinal, não havia trânsito algum, mas Viviane viu o misto de pavor e incredulidade em mãe e filha. — Foi amaldiçoado pelo que chamou de Anu, uma divindade pagã antiga, que o concedeu o vício e necessidade de se alimentar dos órgãos das crianças de seu vilarejo para poder continuar vivo como castigo pela destruição do povo dela a qual ele liderou, quando não teve mais como se alimentar em seu país viajou pela Europa e depois chegou nas Américas.

Voltou a fitá-las pelo espelho retrovisor, no banco de trás, Clara tinha os olhos carregados de lágrimas e podia imaginar porquê. Depois de tanto tempo vivendo de cidade em cidade, sem se apegar a ninguém e tendo contato apenas quando necessário, Viviane havia perdido um pouco do jeito em como lidar com as palavras em situações como aquela. Por isso, se apressou em emendar:

— Johan está descuidado dessa vez, depois te tantos anos, parece estar perdendo o jeito. Vamos achar seu garoto, Clara, e arrancar a cabeça do pescoço de Johan na primeira oportunidade. — Assegurou.

— Foi esse… essa… coisa quem contou tudo isso a você? Porque faria isso? — Rebeka semicerrou os olhos, no colo, a bolsa estava deixada de qualquer jeito e o celular nas mãos.

— Porque é orgulhoso e vaidoso, gosta da adrenalina. Na primeira vez eu fugi, nas outras duas me deixou viva porque sabia que eu iria atrás.

Depois de anos lembrando detalhadamente de cada uma daquelas experiências enquanto sonhava nas noites regadas a uísque que tinha na estrada em sua busca por vingança. O rosto pálido e de olhos completamente brancos de Johan somados ao sorriso polido e diabólico assombravam e perseguiam ela como se tivesse o diabo preso em suas costas.

Só percebeu o passar do tempo quando o carro foi estacionado pouco antes da construção. Era um terreno grande cercado por muros altos com acabamento por fazer, os tijolos vermelhos a mostra em alguns cantos, na entrada havia um portão de ferro que permitia ver o interior: o casarão estava levantado, mas, assim como os muros, inacabada, com metralha e pedaços de madeira espalhadas pelo que talvez um dia viesse a ser um jardim entrada.

Viviane as parou assim que abriram as portas do carro para descer, caminharam juntas até o porta malas. Entregou nas mãos de mãe e filha duas armas .38, elas seguraram sentido o peso.

— Estão carregadas. Pela cara de vocês é óbvio que nunca tiveram uma arma, mas não há tempo para aprender agora. — Colocou um facão preso ao cinto de couro e descansou nos braços uma .12 negra. —Apontem, tentem manter os braços firmes para que não ricocheteie. Ele se move rápido então tenham certeza de que o tem na mira, ok?

Ambas assentiram trêmulas e apreensivas.

— Sei que é demais pedir isso, mas é a chance que temos de recuperar seu garoto ainda com vida. — Finalizou incisiva, depois, se colocou a caminhar sendo seguida por Clara e Rebeka.

Entraram, evitando pisar em partes que fariam barulho, como lascas de tijolos ou telhas, logo, alcançaram onde deveria estar a porta de entrada, mas era apenas uma abertura que levava a um cômodo vazio e amplo com poeira por todo lado.

Seguiram em frente, atravessando mais dois ou três cômodos sem portas até chegarem a uma escada que levava a um cômodo no andar inferior, um porão de onde uma pequena luz tremulava, como aquela velha história da luz do fim do túnel, entretanto, o que aguardava do outro lado certamente não era o paraíso.

Johan.

9

O CHEIRO ERA FORTE. Seu avô teria usado a palavra catinga para definir, mas Rebeka tinha certeza que a palavra não expressa o quão fétido estava o ambiente e o ponto de partida parecia ser exatamente o mesmo de onde vinha a luz amarelada que lançava sombras contorcidas e trêmulas.

Olhou para o lado e viu a mãe de uma maneira que jamais poderia ter imaginado em todos os seus anos de consciência: Clara vestindo um avental para lavar louças e uma arma nas mãos de unhas bege recém-pintadas. Isso a fez se perguntar até que ponto uma pessoa chegaria para salvar alguém que ama, sendo ainda mais profunda, a que ponto uma mãe chegaria para salvar seu filho? Entrar no carro de uma estranha, seguir para uma casa em construção, ter uma arma em mãos sem nunca ter atirado e agora descer em direção a algo totalmente desconhecido.

Sua mente mudou desse pensamento para outro tão rapidamente quanto o cheiro invadia suas narinas. A podridão se intensificava a cada degrau que desciam seguindo a mulher mais velha, Viviane, a arma parecia suar e vibrar em suas mãos. Lembrou-se da história de que aquela coisa havia comido as crianças de seu vilarejo e sem ter a fome saciada seguiu para outros lugares, se o cheiro de carne podre combinado com o sequestro das crianças resultava no que estava imaginando… um arrepio se espalhou por todos os pelos de seu corpo, mas todas as imagens que havia criado em sua mente não chegavam perto do verdadeiro horror que encontraram lá embaixo.

A luz tremulante vinha de inúmeras velas acesas em cantos no chão, nas paredes e sobre a mesa de madeira retangular que estava posicionada no centro da sala, uma toalha branca sobre ela estava suja e haviam moscas no ar. Sentados e aparentemente desmaiados estavam seu irmão e mais duas crianças, um suspiro de alivio escapou por seus lábios e quase pôde ouvir o coração de sua mãe saltar pela boca quando a mesma procurou sua mão e a apertou, então olhou novamente para frente e por algum motivo não havia prestara atenção no que havia sobre a mesa e quem se aproximava dela.

Sobre a toalha e abaixo das moscas estava uma grande travessa e nela o que pareciam órgãos banhados em sangue, reconheceu alguns das figuras dos livros nas aulas de biologia e dos episódios de Grey’s Anatomy, mas não esperava que cheirasse daquela maneira ou parecesse tão repugnante. Coração, pulmões, fígado e algo mais que não conseguiu identificar. Sentiu um suor frio descendo do couro cabeludo para a testa e a bílis subir por sua garganta pacientemente como um escalador no Everest. Infelizmente, havia como piorar, a pessoa que se aproximava ficou de pé ao lado da mesa e retirou o chapéu: o rosto era cumprido e todos os traços pontudos e lisos deixando a pele pálida e macilenta ainda mais destacada ao clarão das velas, o cabelo loiro estava preso em um rabo de cavalo, mas não passava da altura dos ombros, os olhos eram totalmente brancos com veias vermelhas saindo dos cantos como as raízes de uma antiga árvore que penetrava a terra.

Com um sorriso retorcido nos lábios finos, ele se inclinou sobre a mesa e esticou os dedos esguios em direção ao banquete de sangue e órgãos, molhando os dedos e os levando a boca, experimentando e degustando, tudo isso sob o olhar horrorizado das três mulheres ainda paradas ao pé da escada.

Vivian, mo ghaol, é uma enorme gentileza da sua parte vir a minha morada e trazer biadh, mas você sabe bem que inbhich não fazem parte do meu gosto refinado. — A voz era quase cavernosa, como um eco na escuridão, de sotaque muito marcado e cheio de palavras que ela não fazia ideia a qual lugar da Europa pertencia.

— Espero que não tenha mantido esperanças de sair vivo dessa vez, Johan. — Viviane mantinha a arma em mãos e a voz era firme, ou ao menos tentava ser, já que ela mesma havia dito ter se encontrado com ele anteriormente.

Johan manteve o sorriso macabro preso aos lábios, agora, manchados com sangue.

— Nunca trouxe outras pessoas junto. Talvez esteja envelhecendo, caraid. Estou realmente com fome, essa é a primeira leanabh, estou faminto e ainda há outras, então não vamos nos prolongar.

— Clara, Rebeka— a jovem se assustou com a menção de seu nome, entregou sua total atenção que estava dividida entre Johan e seu irmão amarrado no chão —, levem as crianças.

— Não, não, não. Roubar o biadh de um seann duine não parece ser algo muito educado. — Johan permanecia parada, as pontas dos dedos sujos tocando a mesa imunda.

— Eles são humanos, coisa que você não é há muito tempo. —  A mais velha rebateu.

— Nada além do que mereço, só pego o que preciso. Quatro ou cinco em anos.

— Não meu filho.

Rebeka percebeu que a mãe, assim como ela, não havia seguido o comando de Viviane de ir e pegar as crianças. Clara ergueu a arma na altura dos ombros e, destravada, atirou contra a criatura antiga. Foi lançada dois passos para trás por causa do ricocheteio do disparo e a bala em nada afetou o outro que deixou uma risada baixa, quase um assovio, escapar.

— Humana burra, balas não me levam a bàs. Mas machucam para caralho. — Ele escancarou a boca e mostrou os dentes monstruosos enquanto avançava contra elas.

Depois disso tudo aconteceu em um turbilhão de imagens sentimentos. Dias depois, quando questionada pela mãe em uma madrugada chuvosa onde as duas não conseguiam dormir, ela admitiria que lembrava dos detalhes e do fim, mas não do todo.

Ela e a mãe foram empurradas para o chão, onde caíram sentadas e Viviane foi rápida o suficiente para fazer isso e erguer a .12 em um disparo que acertou Johan na barriga, o lançando em cima da mesa e derrubando os órgãos expostos por toda a toalha até o chão.

Deixando a arma negra de lado Viviane sacou o facão preso ao cinto e, para a surpresa de Rebeka, ele se dividiu ao meio, formando dois, dessa maneira a mulher não perdeu tempo em avançar mais uma vez contra a criatura que uivava de ódio e dor.

— As crianças. — Ouviu sua mãe dizendo e respondeu apenas com um assentir de cabeça, olhou para os dois meninos e a menina que pareciam estar despertando de um sono desorientado, entre eles, seu irmãozinho com um dos braços arroxeado e inchado.

Clara tomou Henrique nos braços enquanto Rebeka tentava ajudar as outras duas crianças a ficarem de pé. Ouviu um murmurar de palavras incompreensíveis e virou na direção oposta à que estava e assistiu Viviane levar um soco no estômago e deixar um dos facões cair enquanto era empurrada contra a parede e erguida pelo pescoço para então ficar cara a cara com Johan.

Então veio o ímpeto. Uma crescente ira que preenchia seu peito e corria pelas veias de maneira selvagem, um leão correndo pela planície em busca de sua presa. Levantou, aproveitando a distração da criatura, apanhou o facão e, desviando da mesa, o cravou nas costas dele. Atravessando os tecidos, pele e órgãos, indo bem fundo. 

Johan gritou e pareceu como se uma multidão estivesse sendo massacrada, foi um som que preencheu todo o porão. Ele cambaleou, deixando Viviane cair no chão e se virou fitando a garota com o facão ensanguentado ainda em mãos.

— Você não parece tão imortal, babaca. — As palavras escaparam, àquela altura, não havia mais filtro.

— Ele não é imortal, só difícil de matar. — Viviane o esfaqueou novamente nas costas, agora, entre duas costelas e a girou, fazendo-o berrar novamente a plenos pulmões. — Passa o facão. — A mulher estendeu a mão e Rebeka não pensou duas vezes antes de entregar.

Viviane puxou o que ainda estava preso em Johan e o chutou nas pernas, fazendo-o cair de joelhos, o sangue descendo pelo corpo e roupas criando uma poça no chão empoeirado. Cruzou os facões como se fossem as lâminas de uma grande tesoura de poda e as posicionou nas laterais da cabeça dele.

— Livrai-nos do mal, amém. — A mulher tinha um brilho sanguinolento no rosto, os cabelos pretos soltos pendiam dignos do alto da cabeça, a camiseta melada de sangue e os braços deixavam a mostra a força adquirida durante os anos de caçada.

As lâminas correram rápidas e com tamanha potência que na primeira tentativa fez a cabeça rolar de sobre os ombros e cair na poça de sangue junto com cabelos loiros e o líquido vermelho e espesso jorrou como uma erupção de um vulcão há muito adormecido.

Rebeka sufocou um grito, assim como Clara, horrorizadas, mas as crianças não tiveram tanto controle e elas gritaram assustadas.

Crianças não deveriam testemunhar aquilo. Jamais, pensou em dúvida sobre se aproximar ou não.

10

COMBATI O BOM COMBATE, terminei minha carreira, guardei a fé.

Sabia em qual livro havia lido tal frase e também as vezes em que havia ouvido. Quando mais nova, antes da adolescência, frequentava a igreja batista com os pais e aquela era uma das passagens que comumente era usada em homenagem a algum membro da comunidade cristã quando esse havia ido de encontro ao Criador.

Tentou sorrir com a lembrança, mas não achava que seu corpo ainda estava apto a responder tal comando. Soltou os facões no chão e cambaleou de encontro a parede e batendo as costas contra ela, desceu as mãos meladas de sangue até a altura do estômago de onde vinha toda a dor que começava a se espalhar pelo corpo.

Viviane Artures começava a sentir vertigem, o embaçar da visão e os sons à sua volta se tornando distantes. Enfim, cumprira sua lida, a promessa feita ao filho que não pôde enterrar por não ter sobrado nada dele além das roupas engomadas no guarda-roupas e os brinquedos no quarto. A vingança que alimentara durante vinte e cinco anos agora dava lugar a uma paz.

Não sabia o que havia depois de atravessar o véu da morte nem onde seu garotinho havia ido, mas, se fosse possível, desejava que qualquer entendida divina a levasse para junto do seu Nicolas. Podia até mesmo imaginá-lo correndo em sua direção de braços abertos e

vestindo uma camiseta de marinheiro, os apertadinhos pelas maçãs do rosto rosadas e as covinhas fundas nelas.

Quatro vezes, ela observou, na primeira teve meu filho, nas outras duas me usou para sua própria diversão, agora tinha a cabeça dele aos meus pés.

Por fim, se entregou, prestes a obter a resposta para uma das perguntas mais antigas da humanidade: o que há do outro lado?

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Antônio Gomes

Antônio Gomes

Colaborar do Dinastia N. Um amante irremediável da cultura pop em todas as suas formas. Escritor e leitor voraz. Seguidor fiel do mestre Stephen King e filho dos anos noventa, sendo o sonho conturbado da realidade que ainda está aprendendo a dar os primeiros passos, é fácil me encontrar comendo batatas, assistindo séries ou escrevendo alguma história com plot twist.