Entre todas as coisas possíveis de acontecer em Nova Amsterdã, espíritos, fantasmas e criaturas ligadas a outros planos espirituais definitivamente tem seu espaço para se destacar nessa escuridão. Depois do prelúdio 3AM chegamos a uma história maior ainda dentro de Nova Amsterdã chamada Beira-Mar.
Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos.
1
BONITO COMO SEMPRE, foi o que passou pela mente de Edna B quando finalmente pôde avistar o litoral a distância. O marido, Pedro, dirigia sem pressa o carro alugado pelo asfalto. As ruas daquele lado da cidade eram um pouco estreitas, pois pertenciam ao lado antigo da Grande Nova Amsterdã.
Eles haviam recebido a proposta um mês atrás e não demoraram em concordar que era uma boa oportunidade. Os dois primeiros livros venderam bem não só no mercado brasileiro, mas também lá fora, sendo considerados como os novos Ed e Lorraine Warren. Pelo dinheiro, mas não só por ele, ao receberem a ligação do velho amigo sugerindo que podiam escrever a respeito do caso que ele tinha em mãos, organizaram-se o mais rápido possível viajando de volta para o Rio Grande do Norte no extremo nordeste do país.
Fizeram o contorno e entraram na rua mais próxima naquele lado movimentado da praia de Cotovelo, onde haviam guarda-sóis, carros estacionados, pequenos quiosques e inúmeros banhistas, o destino deles estava mais adiante, na parte mais afastada da praia onde poucos banhistas se aventuravam. Chegaram ao Caminho das Flores, uma pequena rua entre a lateral de um hotel e o muro de uma casa de praia onde era todo coberto por inúmeras plantas com as mais diversas cores de flores. De carro, aquele era o ponto máximo que atingiriam, então desceram após estacionar e caminharam até estarem na areia da praia ouvindo as ondas serem empurradas até a encosta e o vento forte que bagunçava os cabelos.
Nem um minuto de caminhada e o casal estava em frente ao seu destino. Uma enorme casa à beira-mar assomava pouco acima, com seus andares e janelas de vidro, subiram a escadaria de pedra, tomando cuidado para não escorregarem, depois atravessaram o portão e o gramado até chegarem na varanda onde encontraram Adler Pinheiro, o contato do casal no estado, com um sorriso amistoso.
— Podia ter ido buscá-los na pousada. — Foi a primeira coisa que disse ao estarem próximos o suficiente.
— Pedro achava que podia encontrar tudo sozinho, você sabe, mas até foi bom dar uma volta pela cidade. As coisas parecem bem diferente desde de 2015. — Edna sorriu de volta e abraçou o velho amigo com carinho. — Ao contrário de você que continua com a mesma cara jovem.
— Precisa nos ensinar esse segredo. — Pedro trocou um aperto de mão e um abraço social.
— Voltem a viver aqui, apesar de tudo, o ar do litoral sempre faz bem.
— Algum dia, talvez. — Pedro aponta.
Ela sabia que isso não aconteceria tão cedo, não pelo marido, mas por si mesma. Ainda não se sentia confortável ao ponto de voltar a morar permanentemente naquele lugar. Tinha memórias incríveis dali ao mesmo tempo em que haviam horríveis também e, infelizmente, elas pareciam mais poderosas no momento.
— Então essa é a casa — Adler mudou de assunto —, não parece tão violenta.
— Elas normalmente não parecem, é assim que atraí. — Edna apontou a entrada e um leve arrepio percorreu seu corpo. — Eles estão quietos.
— As manifestações não são frequentes e normalmente acontecem do fim da tarde em diante. Um fato interessante que irão perceber quando lerem o arquivo do caso detalhadamente: todos os suicídios, mortes e assassinatos aconteceram depois das cinco horas da tarde, nem um minuto antes.
Os móveis ainda estavam cobertos por lençóis brancos, como era típico em casas como aquela, mas ao chegarem na sala de estar perceberam barulho no segundo andar e Pedro ergueu as sobrancelhas em alerta, mas Adler apenas riu dele.
— São os empregados, após comprar a casa, contratei em uma agencia de diaristas direto da capital, já que os locais não quiseram nem ao menos entrar no terreno. Não posso julgá-los, mas não conseguiria fazer todo o trabalho sozinho.
— Quando você pretende fazer o rito? — Edna tocou a madeira das paredes e a sensação de incomodo continuava instalada nela, mas não passava disso, nenhuma imagem se formou em sua mente, apenas uma nuvem de sentimentos mistos que não diziam realmente nada além de confusão.
— Ela me pediu três dias, então, daqui duas noites, na terça-feira, para poder reunir o coven.
— Primeiro de maio. — Pedro aponta o dia em questão.
— Mais especificamente o solstício, a época escura no hemisfério sul. Samhain. — Edna acrescenta.
Por um momento todos ficam em silêncio, na apreciação da calmaria, mas como se aguardassem algo chocante a qualquer momento.
— Então voltaremos amanhã à noite, mas antes gostaria de encontrá-la e conversar um pouco sobre o que será feito. — Pedro se voltou para o amigo que assentiu.
— Entrarei em contato e verei se está disponível.
— Ela sabe que seremos nós a analisar o caso e escrever a respeito?
— Sim e disse estar ansiosa para te encontrar outra vez. — Riu.
— Vadia. — Edna B cospe a palavra, acende um cigarro e sai em direção a porta da casa.
2
— É BEM PESADO. — Pedro disse ao que viu a esposa entrar no quarto da pousada vestindo um short jeans e blusa regata. Era um dos fatos dele adorar o clima do Rio Grande do Norte, o proporcionava uma visão maravilhosa da mulher que amava.
— Pode começar. — Ela indica com um gesto ao deitar na cama fitando o teto.
— A casa foi encomendado e construída em 1989 por Domenico e Chiara Massimiliano, que sempre vinham ao Brasil e tinha preferência por essa praia, por isso construiu a casa. Mas a alegria não durou muito, a primeira morte ocorreu em 1990, no terceiro quarto da casa, onde Mirko, o filho mais novo do casal italiano, aos dezessete anos, cometeu suicídio se pendurando pelo pescoço em um dos caibros do teto. — Pedro passou a página do arquivo digital enviado por Adler e rolou para baixo no notebook, encontrando o resto dos dados. — Em 1991, Greco, o primogênito dos Massimiliano, bateu com a cabeça em uma pedra ao se desequilibrar durante um almoço em família no gramado. Morreu antes do socorro poder chegar. Depois disso eles foram embora e venderam a casa para um empresário paulistano, César Patrício, que pretendia abrir uma filial de sua loja de automóveis no estado. Trouxe a mulher e a filha. A mulher, Roberta Patrício, foi morta três meses depois de se instalarem durante um assalto frustrado que acabou em homicídio.
Edna continuava na mesma posição, sem dizer nada ou expressar qualquer sentimento, apenas absorvendo as informações.
— Ela passou quatro anos sendo cuidada pela corretora, mas ninguém a comprou, até 1995, quando um cantor local, Mário Quintana, a comprou e deu de presente aos pais. Esses demoraram pouco mais de dois meses, o homem sofreu um infarto e a mulher foi internada em uma casa de repouso após as inúmeras afirmações de que o esposo tinha falecido de medo.
— Os espíritos finalmente se manifestaram. — Ela apontou.
— Provavelmente até antes, mas esse foi o primeiro relato oficial disso. Foi comprada depois pelo dono da SL Imobiliária, Salomão Lima, empresa que cuidava do imóvel na época, e posto para alugar. Foi alugada seis vezes. Uma delas acabou em tragédia, um casal de namorado cometeu suicídio no quarto principal. Miguel e Luísa. Tiro na cabeça, primeiro ela, depois ele. Isso foi em 2002.
Assistiu Edna levantar e ir até a janela, abrindo e deixando uma brisa noturna entrar junto com a luz da rua que se mesclava na noite com a da lua. Ela debruçou-se sobre o parapeito e fez sinal para que ele continuasse.
—Ela ficou sem visitas até 2005, mas nesse período, as pessoas que visitavam a praia e costumavam ir até aquela área do fim da tarde em diante afirmaram diversas vezes, verem vultos na casa ou ouvirem vozes vindas daquela direção. — Clicou em um link anexado a essa parte e uma janela abriu no navegador do notebook. — Opa! Temos um vídeo, Edna.
Não demora para a mulher de cabelos castanhos e longos sentar ao lado dele. Pedro Bartolomeu a fitou e por um momento esqueceu completamente o vídeo que carregava. Edna lembrava ao esposo uma atriz, daquelas dos filmes dos anos 50 ou 60, com um ar etéreo e um brilho quase sobrenatural na pele levemente bronzeada, um sorriso curto e bonito. Gostava de músicas antigas, de Caetano Veloso até Nina Simone. Sem rodeios, a beijou, sentindo os lábios que tanto venerava contra os seus.
— O vídeo carregou. — Edna sussurrou contra a boca dele, uma animação brilhando nos olhos.
— Vamos ver alguns espíritos. — Viraram os rostos e apertou o play.
Era uma filmagem de celular e, ao contrário do esperado de filmagens do gênero, não estava em uma qualidade ruim, um pouco tremido, mas não de todo mal. No começo não era nada perceptivo, estava sendo filmado da escada de pedras e, por ser apenas cercada por uma grade entrançada, dava total visão de ambos os lados. Havia mais de uma pessoa no lugar, o que filmava e talvez mais duas, pois parecia haver três vozes diferentes ao fundo. Na varanda, próximo a porta, uma sombra crescia, mas ela tinha asas, nada como um espirito humano, mas logo o vídeo acaba quando as pessoas descem a escada correndo.
— Isso não é um fantasma. — Edna deixa as palavras escaparem.
— Não mesmo. — Concorda.
— Se o vídeo for real estamos lidando com algo maior que simples fantasmas, Pedro.
— Vamos ver o resto das pessoas que estiveram na casa, depois voltamos a isso.
Edna assentiu. Pedro abriu novamente o arquivo com as informações.
— Em outubro de 2005 um trio de amigos invadiram a casa e eles foram encontrados mortos na casa. Depois disso, em 2009 o mercado imobiliário regional ferrou tudo e a SL Imobiliária decretou falência e Salomão vendeu a casa. Francesco Fernandes a comprou e planejou transformá-la em uma pousada, chegou a encomendar projetos para expansão da casa já que o terreno era grande o bastante para comportar. Mas ele morreu na casa junto a dois empregados pelas mãos do namorado de vinte anos, Caíque Sá, que alegou ter sido influenciado por uma voz que parecia vir de dentro dele mesmo e que quando começou não conseguiu parar.
— Tenso.
— Tem como piorar. Veja: a última dona da casa antes de Adler foi Yavanna Levi, uma baronesa que queria fugir dos filhos que a estavam perturbando pela herança e o que iria para quem, então ela comprou a casa e disse não se importar com seu passado, isso em 2012. Mas entrou em uma guerra pessoal com os curiosos que sempre se acumulavam nas extremidades do lugar querendo capturar alguma imagem dos fantasmas. Ela não teve paz, acabou indo embora quando um menino de doze anos morreu tentando entrar na casa. O imóvel ficou no mercado até esse ano, quando Adler a comprou.
— E agora ele quer fazer uma limpeza espiritual na casa e usá-la. — Edna concluiu.
— Mas não sem tirar um maior lucro nisso, ele não é burro. Imagine, um livro sobre uma das casas mais assombradas do Brasil sendo finalmente liberta dos seus inquilinos indesejados. Isso vende como água.
Ela suspirou, pegou uma presilha e prendeu o cabelo deixando os ombros a mostra. Haviam uma tatuagem no direito que dizia Paradise. Edna vai ao telefone e fala com a cozinha da pousada Maine e solicita um vinho e dois sanduiches. Beija Pedro na bochecha e o encara com os olhos verdes e hipnotizantes.
— Vamos fazer isso, mas precisamos jogar limpo. Amanhã vamos colocar todas as cartas na mesa. Ainda estou sentindo que não se trata apenas de uma velha casa assombrada, Pedro. Foram tantas tragédias em um único lugar, isso deixa uma marca e atraí coisas, quem sabe o que pode realmente estar habitando os cômodos.
— Deixe isso de lado, ao menos, por essa noite. Vamos comer os sanduiches, beber e depois transar até estarmos suados a ponto de não conseguirmos ignorar um banho juntos. — Beijou-a mais uma vez, sorrindo e vendo que havia retribuição nos gestos dela. — O que acha? Você sem roupa, eu sem roupa, essa cama grande…
— Você me convenceu na parte de beber e depois transar.
3
MARINA. Esse era o nome do pub em que se encontraram depois das três horas da tarde. Ficaram em uma das mesas expostas ao vento, do lado da sombra, próximo as palmeiras que davam um ar tropical característico da região. Edna B sentia falta disso loucamente, principalmente quando olhava pela janela de seu quarto no prédio em que morava em São Paulo e só encontrava mais prédios. Me sinto presa em uma selva de pedra, dizia para si mesma muitas vezes, mas logo esse lado de sua mente também a recriminava: Ainda assim, a paisagem de lá não pode apagar as memórias que tão esforçadamente papai criou com a bebedeira e os punhos cerrados.
Pedro e ela foram os primeiros a chegar e pediram apenas café, outra coisa que amava no estado onde nascera, conversaram um pouco sobre eles e nada sobre o caso, no aguardo dos outros dois. Edna sentiu, não o velho amigo, mas sim a presença poderosa da mulher que o acompanhava.
Mesmo em um dia como aquele, onde a temperatura estava na média comum, ela vestia preto dos pés à cabeça. Um vestido sem mangas com fendas que permitiam passos largos e as pernas serem mostradas livremente assim como um par de óculos escuros e um chapéu capeline.
Cumprimentaram-se educadamente, Adler e Ivana Scartah ocuparam as cadeiras vazias, ela pediu chá e ele, café. Mesmo depois da chegada das bebidas, o silêncio que havia se instalado há pouco permanecia lá, pairando sobre suas cabeças.
— Talvez precisemos de um padre, afinal. — Pedro se responsabilizou por cortar o momento.
— Porque? — Adler franze o cenho para tal afirmação. — Padres não são a melhor opção quando se trata de espíritos, as…
— Acreditamos que não haja apenas espíritos na casa. — Edna B revelou e seus olhos voaram direto para a outra mulher na mesa. — O vídeo que anexou no arquivo, Adler, é verdadeiro?
— Sim, por incrível que pareça, pelo menos, da parte de quem filmou não foi forjado.
— Aquilo não parecia nem de longe um espírito, meu amigo, parece…
— Algo que nunca teve um corpo no plano físico. — Ivana se expressa mantendo o tom de voz casual pelo qual normalmente é reconhecida — A presença dele na casa é um erro, mas não há necessidade dos ministros do deus cristão, o coven está pronto para o que tiver de ser feito.
— Então você sabia dessa coisa? — Adler tenta manter a postura diante da informação, mas parece a ponto de estourar.
Edna move sua mão para junto da dele e o acalma com a naturalidade que sempre teve.
— Estamos corrigindo algo, a invocação do ser foi uma medida desesperada de uma pessoa desesperada, nós do coven podemos resolver isso.
— Foi por isso que aceitou participar? — Adler inqueriu.
— Sim, você não deveria estar surpreso.
Um novo silêncio se instaurou e outra vez foi desfeito por Pedro que tirou da bolsa um pequeno gravador prateado e o colocou na mesa, diante de Ivana Scartah que o entregou um olhar curioso.
— Precisamos de algumas informações para o livro e ninguém melhor do que a pessoa que vai fazer o rito para nos manter por dentro dos detalhes. — David explicou.
Ivana assentiu.
— Então, porque dia primeiro de maio?
— É o dia do Samhain no hemisfério sul, no norte, é celebrado no dia 31 de outubro. É considerado o nascer de um novo ano para nós que praticamos a Arte. É o dia de honrar os que já foram para o Eterno Verão. Também é a noite em que o véu que separa o mundo material do etéreo fica mais fino e o contato se torna mais fácil. — Ela bebeu do chá, limpando o canto da boca, em seguida. — O poder da magia se torna quase palpável de tão intenso nessa noite O Outro Mundo desce sobre o nosso conforme a luz do sol some, logo com a chegada do crepúsculo. O cuidado tem que ser grande, porque Thanatos vaga sobre os povos com mais fome nesta data.
— Ou seja, correremos risco de morrer? — Pedro continuou a encarando.
Pedro B havia conversado com a esposa naquele mesmo dia pela manhã, havia estudado os demônios de diversas culturas, passará um bom tempo com a Chave de Salomão e os outros escritos em mãos e até encontrou a respeito de demônios e entidades diabólicas que se disfarçavam de espíritos ou os manipulavam para ter acesso a humanos. Mas o que o fazia desconfiar um pouco é que não haviam relatos explícitos de possessões e tal ato é um modus operandi de tais seres. De duas uma: era um demônio que atuava de maneira diferente da usual ou um ser diferente do costumeiro.
— Você corre risco de morrer a qualquer momento. Atravessando a rua, comendo, dormindo, transando. Enquanto estiver vivo há esse risco. Durante o que será feito, você só se arriscará um pouco mais. É como saltar de paraquedas.
— É como tirar a morte para dançar e ver se no final da noite ela caiu na sua lábia. — Edna termina seu café.
— Isso mesmo, irmã. — Ivana entregou seu primeiro sorriso aquela tarde.
(CONTINUA…)