O Mundo dos sonhos também tem ligação com Nova Amsterdã? Voltado para a cultura, ficção e fantasia, o trabalho a seguir é fruto de uma parceria entre o Dinastia N e o autor Antônio Gomes. A iniciativa busca explorar mais o universo das ideias do escritor, através desta coletânea de contos. As obras serão publicadas semanalmente as terças-feiras. Na décima publicação da série Nova Amsterdã, o conto apresentado será: Morfeu.
1
O RIO FOI A PRIMEIRA COISA DA QUAL SE DEU CONTA, em seguida, foi de que não estava sozinho. À beira do rio seu melhor amigo se encontrava de pé com a água amarelada batendo na altura dos tornozelos. Em si, Jorge, não lembrava de como foi parar ali, a cena era completamente atípica, mas isso não se demorou, como se tivessem derramado um balde de água sobre sua cabeça, o entendimento escorreu por sua mente.
— Preciso de ajuda. — Jorge deixa as palavras saltarem da boca e elas saem roucas e arranhadas como se não usasse a voz há algum tempo, como se tivesse acabado de acordar.
Desceu o pequeno barranco que levava da parte onde estava — cheia de árvores frutíferas e mata alta — até o rio mais abaixo onde o amigo esperava com uma expressão calma de quem não precisa verbalizar que pode ajudá-lo, tudo parecia estranho, mas familiar.
— Quero atingir o próximo nível, ir mais a fundo nisso, e preciso que você seja a ligação, minha corda com esse lado.
O amigo assentiu, um pequeno sorriso de concordância nos lábios e segurou no braço de Jorge quando o mesmo se aproximou, para que o mesmo não caísse ao descer. Jorge sabia o que deveria fazer em seguida, o portal era corrente e veloz e jamais se cansava.
Ainda em silêncio ele sentou nas águas frias do rio e assistiu o amigo se ajoelhar ao lado. Respirou fundo, expandindo os pulmões ao máximo e tentando manter a calma. Estava disposto a ir além dessa vez, tinha total consciência de suas escolhas e não podia deixar a oportunidade passar mais uma vez.
Sentiu uma das mão do amigo nas costas e a outra no peito, o incentivando a deitar e foi o que fez. Deitou nas águas e sentiu a correnteza exibindo sua força, não se importando com as roupas molhadas. Quando totalmente submerso, fechou os olhos, apenas sentindo.
“Vá para os braços de Morfeu”, foi a última coisa que ouviu, sussurrada pela voz do amigo em sua mente. Primeiro a água fria ficou morna e logo esquentou, quase em ebulição, mas não se queimou. O portal se abriu em uma luz bruxuleante dentre a escuridão e logo ele não estava mais fora do portal, então era o próprio portal, para, em seguida, estar do outro lado.
Do lado de lá ele despertou deitado em uma poça de água em um cais de madeira. Sentou-se e olhou em volta: às suas costas havia o mar escuro e sobre ele uma névoa densa que o impedia de ver o que estava além, a sua frente uma velha cidade se prostrava diante de uma colina que também era encoberto pela névoa.
Levantou sem dificuldades, percebendo ainda estar vestindo as mesmas roupas, a cidade à sua frente parecia familiar e abandonada, entretanto, despertava certa estranheza, já que tinha certeza de nunca ter estado em um lugar nem ao menos parecido com aquele. As casas, estabelecimentos e prédios pareciam pertencer ao século XXI ao mesmo tempo em que entre um e outro surgiam colunas, templos ou obeliscos velhos com uma aparência que remetia à arquitetura grega, romana, egípcia e até suméria.
Jorge estava impressionado com a magnitude do lugar e ao mesmo tempo assustado, pois não sabia se sua mente teria capacidade de construir aquilo tão detalhadamente, a perfeita combinação entre o que foi a arquitetura e o que ela se tornou no último século.
Caminhou por alguns minutos na rua de paralelepípedos e não sentiu frio apesar do clima ser propicio a isso. Os estabelecimentos estavam realmente abandonados, mas não em estado de perda total, como se quem quer que habitasse aquela cidade sem nome a tivesse deixado há pouco tempo. As placas, painéis e outdoors estavam em uma mistura de português compreensível e anunciavam produtos igualmente conhecidos assim como haviam alguns de produtos que ele jamais pensou além das palavras serem escritas em um alfabeto completamente diferente do que ele usava ou que lembrava de conhecer.
Só percebeu estar andando em direção a colina enevoada quando tentou parar, mas algo em seu íntimo impulsionava os pés ao dar o próximo passo. Respirou fundo e estreitou os olhos tentando ver algo lá no alto, um vislumbre ou um contorno, porém nada aparecia aos seus olhos mortais e sonhadores. Já estava ali, era o mais longe que conseguiu em todas as tentativas.
Imaginou se as pessoas que viviam ali também eram seres humanos ou se ao menos se pareciam com humanos. Ouvira inúmeras histórias enquanto crescia sobre o quão egoísta era acreditar que em um universo tão vasto onde a Terra nada mais é que um grão de mostarda os humanos eram a única raça inteligente.
Quanto mais se aproximava da colina foi percebendo algo novo e que perturbava seu ser. Todos os monumentos antigos e novos começavam a dar lugar a um novo tipo de construção feita por blocos de mais de três metros de altura que se amontoavam em muros que juntos formavam construções nem levemente familiar. E ele tinha um olho bom para isso, estudava arquitetura mundial desde o colegial.
Franziu o cenho para as inscrições nessas construções ciclópicas que perdiam os topos em meio a névoa. Os entalhes em pedra pareciam mais rústicos e antigos que os hieróglifos egípcios, do que a escrita suméria, do que as pinturas nas cavernas de onde se arrastavam as primeiras formas inteligentes.
Aos pés da colina ele suspirou e, pela primeira vez desde que emergira naquele mundo onírico, sentiu os nervos se agitarem e a pressão sanguínea aumentar. Estava ficando nervoso, não queria acreditar que aquele era o limite de um mortal, queria chegar até o alto, descobrir o que havia por trás do véu enevoado, deu o primeiro passo na escadaria e precisou curvar bem as pernas já que os degraus eram mais altos do que os normais.
Só se deu conta de que não sabia quanto tempo havia passado ao olhar para baixo e não encontrar mais o início dos degraus já que a névoa os escondia em sua densidade cinzenta. Envolto por aquele evento da natureza, Jorge começava a sentir uma sonolência que se transformava em cansaço.
“Vá para os braços de Morfeu”, as palavras do amigo voltaram a ecoar em sua mente e pensou no que o amigo diria se visse aquelas construções, certamente apontaria que os pesadelos que Lovecraft transformou em contos eram todos verdades sussurradas por uma entidade mais antiga que o próprio tempo.
Àquele ponto Jorge começou a perceber a dispersão da névoa que o permitia ver blocos antigos e ciclópicos como os que havia visto antes de subir a escadaria, estavam derrubados e quebrados, lançados sobre um pequeno gramado verde.
Sentiu crescer em si como as raízes de uma árvore que se esticavam na terra preguiçosamente uma ânsia de medo que o inundou em uma nova onda a respeito do que quer que poderia encontrar. Ao que finalmente deu o último passo precisou dizer a si mesmo para não cair de joelhos na grama enquanto seus olhos contemplavam o que realmente havia no topo da colina.
2
ELÍSIOS. Ou Campos Elísios era como os gregos chamavam o paraíso para onde as almas mais puras dos poetas, heróis e deuses iam após a morte, o lugar de eterno descanso banhado pelas águas do rio Lete. Os cristãos falavam de um paraíso onde nunca anoitecia, as pessoas eram felizes e não havia fome, dor ou tristeza e também era lá onde estava a Árvore da Vida que dera o discernimento a humanidade segundo a mitologia bíblica. Em grande parte das religiões de raízes celtas seus seguidores acreditavam na Terra de Sempre Verão ou da Eterna Juventude.
O lugar que Jorge contemplava era como uma quimera de todos os paraísos do qual já havia ouvido falar e isso explicava o medo crescente que era como um soco na boca do estômago. Se aquele era o paraíso significava que estava morto? Que havia passado muito tempo embaixo da água e a mesma havia se ocupado do espaço em seus pulmões? Ele sentiria se tivesse morrido estando onde estava? Porque seu amigo não o havia puxado de volta? Todas as perguntas vinham em um turbilhão.
Mais à frente se erguia um templo com uma dúzia de colunas quadradas e gigantes, Jorge pensou que talvez tivessem por volta de doze metros em uma cor bege amarelada que davam um ar envelhecido, mas bem cuidado ao contrário de todas as construções abaixo da névoa que tinham aquela aparência abandonada. Entretanto, mais do que para o templo, sua atenção se voltou para as figuras que transitavam pelo lugar de maneira tão suave que quase pareciam flutuar.
Ao se adiantar em passos vagos para frente conseguia enxerga-los melhor: não conseguia identifica-los binariamente como masculino e feminino, todos tinham cabelos longos e vestes em tecidos com cores lavanda e os mesmos flutuavam com os movimentos que os corpos de dois metros faziam mesmo que não houvesse nem uma rajada de vento. Os rostos que conseguiu observar eram angulosos e pálidos, mesmo quando a pele era negra, os olhos transbordavam calma e os adornos no pescoço, braços, pernas e cabeça eram feitos de coisas facilmente encontradas na natureza.
Alguns pareciam dançar, outros tocavam instrumentos enquanto terceiros e quartos apenas se misturavam a paisagem ou colhiam e comiam frutas das árvores que haviam ao redor. Pareciam uma pintura das divindades greco-romanas das quais hoje se conheciam apenas histórias ultrapassadas. Eram assustadoramente belas, todas as criaturas humanoides e ele duvidava que houvesse algo de humano em qualquer uma.
Mas como os corpos celestes e planetas no sistema solar todas aquelas criaturas pareciam orbitar em torno de uma única que estava sentada confortavelmente na grama abaixo de uma grande macieira aos pés do templo. Esse, ao contrário, ele conseguiu notar ser do sexo masculino, ao menos Jorge acreditava, já que tinha o peito pálido e nu à mostra e cabelos escuros como uma noite sem estrelas que emolduravam o rosto quase luminoso que contrastava com as asas brancas retraídas que deitavam ao lado do corpo enquanto tocava uma lira que parecia feita de galhos retorcidos e pequenas flores vermelhas e folhas de um verde extenso cresciam no objeto que soltava uma música terna.
3
TENS FORÇA DE VONTADE.
A voz soou em sua mente, não houve movimento nos lábios da criatura a sua frente — e podia afirmar isso já que havia encarado o rosto sem defeitos enquanto ouvia.
— Quem é você? — Jorge deixou a pergunta saltar boca à fora.
Pergunta errada, novamente a voz ecoou dentro de sua cabeça, como se pudesse tocar cada parte de seu cérebro e, apesar do medo, ela não era ofensiva ou agressiva, ainda assim poderosa e ancestral.
— Que lugar é esse?
Agora estamos chegando em algum lugar.
— Essa é a Terra dos Sonhos?
Você já passou dela, Jorge, a Terra dos Sonhos, como você chama, ficou no rio junto a seu amigo, aqui é um lugar mais profundo, o garoto quis perguntar como aquela criatura sabia seu nome, mas dessa vez controlou a língua, sedento por mais informações. Sente e veja.
Assim ele fez, sentou-se ao lado do ser altivo encostado no tronco largo da velha árvore e assistindo o movimento das outras criaturas circulando por ali como se não houvesse nenhuma preocupação em suas vidas, apenas aquele momento.
Aqui é uma das cinco camadas do que vocês humanos chamam de Mundo Espiritual, αιθέριος, é o nome, ou Terra do Repouso, Etérea, para alguns, é o destino final de deuses e divindades. O fim do mundo conhecido pelos mortais.
Pensou por um momento: se há mais quatro dimensões além do sonho, o que fiz especificamente para vir parar aqui? Justamente em Etérea? Fitou o alto do templo e pôde ver escrito mορφεύς na pedra. Aquilo era grego, ele tinha certeza, durante o segundo ano de arquitetura havia pago uma classe inteira sobre a Grécia e sua influência no meio arquitetônico, gostara tanto que aprendera até um pouco sobre o alfabeto e suas crenças. Então, tinha quase certeza do que estava escrito ali era…
Quando se vem para um desses lugares através dos sonhos é preciso passar pela minha casa, Jorge, pois na antiguidade, quando o mundo era jovem no ventre do universo, eu era um dos filhos de Νύξ conhecidos como Oniros, habitantes da escuridão da alma humana.
— Você é Morfeu, a encarnação dos sonhos, seus irmãos…
Sim. Morte, Velhice, Sono, do Ato de Sonhar e da Fantasia. Todos filhos da Grande Noite. Deixou a lira de lado e curvou-se para fitar o jovem mortal ao lado. Você chegou muito longe, Jorge, pouquíssimos mortais conseguem ter controle sobre os próprios sonhos e ainda menos da metade desses conseguem acessar este lugar.
— Quais os outros lugares? Você disse serem cinco.
Pode decidir seguir em busca dos outros, explorar Etérea, mas garanto que sou o mais amistoso, há segredos que não cabem ao homem saber enquanto vive.
— Há mais coisas entre o céu e a Terra do que pode imaginar nossa vã filosofia. — Soltou um riso anasalado junto da frase que sempre ouvia a avó dizer quando ela não sabia como responder as perguntas dele.
Ela estava certa, nem tudo deve estar ao alcance dos mortais ou eles acabam criando o próprio fim do mundo conhecido.
Jorge se sentia agora entre a cruz e a espada, valia a pena arriscar mais e ir além? O que poderia haver para além daquele mundo paradisíaco? O inferno, talvez? Ou poderia voltar em segurança para casa.
— É para cá que as pessoas também vêm após a morte? Como um céu ou inferno? Essa parte também existe?
Não e sim. Aqui não é lugar de descanso para mortais, apenas o recanto de descanso final de seres quiméricos, como eu, para pessoas como você há o paraíso e o inferno, mas são distantes de tudo isso aqui.
O medo cresceu mais uma vez e agora mais rapidamente. Tinha certeza que queria saber mais, entretanto, não sentia que vali a pena arriscar a vida nessa empreitada. Havia um limite para tudo e aquele poderia facilmente ser o dele.
Desça novamente, vá até a poça de água e deite-se. Ainda é tempo de voltar intacto.
— Eu vou lembrar?
Há coisas entre está dimensão e o mundo mortal que sua mente humana não pode aceitar.
A atração foi inevitável e lá estava ele seguindo em direção ao sol personificado daquele lugar belo e aterrorizante. Ninguém o impediu e todos pareceram se afastar quando enfim ele parou de pé na frente da criatura que mesmo sentada conseguia manter o rosto na altura do dele e foi aí que percebeu a coloração também prateada nos olhos alheios.
4
ABANDONOU MORFEU DEBAIXO DA MACIEIRA. Decidido a voltar para casa, a cada passo que dava, Jorge podia sentir que a névoa se aproximava e coletava pequenos pedaços de suas lembranças enquanto descia. Ao atingir o pé da escadaria já não recordava bem dos rostos das criaturas no alto da colina nem do nome da divindade que o saudou.
Atravessou a cidade fantasma observando mais uma vez os prédios, lojas e casas que continuavam abandonadas com seu ar pesaroso. Avistou o cais de madeira onde despertara e confirmou que a poça d’água estava lá e não havia descido pelas brechas da madeira nem nada do gênero. Deitou-se sobre a poça e não a sentiu molhar seu corpo atravessando o tecido da camiseta até fechar os olhos e respirar fundo.
Jorge despertou em um rompante, levantando no rio com a água sacudindo ao seu redor e a correnteza tentando arrastá-lo, só não conseguindo devido ao amigo estar sentado ao lado, firme, segurando em seu ombro com uma força que sabia que ele não tinha.
— Estou de volta. Estou de volta. — As palavras escaparam de sua boca junto de água do rio que parecia estar vazando por seu nariz também.
— Você precisa voltar, Jorge. — O amigo se pronunciou e ao fitar o rosto conhecido não encontrou nada além de conforto.
— Mas já estou aqui.
— Não é aqui que deve ficar. Volte. — Com essas palavras a mão em seu ombro deslizou até que dois dedos estivessem no centro da testa, logo acima das sobrancelhas e alinhado com o nariz. — Vá. — Comandou.
Mergulho na escuridão, braços e mãos sacudindo até acordar na cama sentindo uma das piores sensações da sua vida. Não conseguia mexer nenhuma parte de seu corpo com exceção dos lábios, mas não verbalizavam palavra alguma. Tudo parecia agoniante e lento. O medo maior veio ao conseguir mexer os olhos e enxergar a criatura sentada sobre sua barriga. Tinha o tamanho de uma criança de quatro anos, mas mesmo imerso na penumbra noturna podia ver os membros atrofiados da criatura e os tufos de pelo que se espalhavam pelo corpo e se concentravam no rosto feio e contorcido. Os olhos vermelhos e intensos o fitaram e em seu íntimo, enquanto o coração acelerava em disparada, sentiu o peso de seus piores medos vir e ir embora quando a imagem da criatura se misturou na escuridão e desapareceu.
Levantou molhado de suor, respirando pesado e sentou na cama do quarto, finalmente de volta a sua realidade. Três minutos depois ele foi até a cozinha beber água, tentando lembrar-se de seus sonhos, porém havia pouquíssima coisa. Lembrava-se de estar em um rio com o amigo, em um rio que havia visitado quando criança. Mas nada muito mais que isso, era como se uma névoa anuviasse as lembranças.