Desde o dia 14 de março de 2025, milhões de brasileiros com aparelhos rodando o sistema Android ou iOS em seus smartphones pararam, sem perceber, de acessar boa parte da internet jornalística nacional. Não por desinteresse. Não por uma guinada cultural. Mas porque o Google decidiu — de forma opaca, unilateral e sem prestação de contas — que centenas de sites simplesmente deixariam de existir dentro da vitrine mais poderosa da web móvel: o Discover.
Dois meses depois, a crise permanece sem explicação. O algoritmo, essa entidade invisível que decide o que pode ou não chegar até o leitor, apagou boa parte da imprensa digital brasileira como quem arrasta arquivos para a lixeira: sem notificação, sem defesa, sem lógica aparente.
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E o mais assustador? A maioria dos atingidos continua tateando no escuro, tentando entender onde erraram — se é que erraram.
Quando o feed te esquece, você vira fantasma
Com base em dados do Marfeel — uma das poucas ferramentas confiáveis para rastrear a presença de links no Discover — editores confirmaram: o colapso foi desigual. Enquanto gigantes como o Metrópoles seguem recomendados, veículos médios e grandes ligados ao UOL, por exemplo, foram varridos do feed sem cerimônia. Sites especializados em mídia, política e esportes sentiram o corte com mais força. A média de queda foi de 50% de tráfego orgânico.
Foi um blecaute seletivo, mas não declarado. E aqui começa o ponto central do debate: como pode um sistema de curadoria com tamanho poder de distribuição operar em escala nacional sem nenhuma transparência pública? Quem audita o Discover? Quem fiscaliza os critérios? Quem garante que a “desindexação” não se torne um mecanismo silencioso de coerção editorial ou punição econômica?
O modelo está quebrado e poucos querem admitir
Em tempos de E-E-A-T (Experience, Expertise, Authoritativeness, Trustworthiness), o Google afirma buscar fontes confiáveis, humanas, originais. Mas o apagão mostrou o contrário: diversos sites especializados, com autores identificáveis e produção constante, foram excluídos. Já outros, com SEO automatizado, conteúdo pulverizado e foco em cliques de alto volume, seguiram ativos.
Ou seja: a régua não é qualidade. É aderência invisível a um comportamento algorítmico instável, o que lança uma pergunta incômoda — não seria o Discover, hoje, um ecossistema onde sobrevive quem mais consegue se moldar às vontades não ditas da IA do Google, e não quem mais informa?
E a resposta é mais grave do que parece. Porque se a lógica editorial for determinada por uma IA comercial e não por valores editoriais claros, o que se forma é uma simulação de jornalismo, não jornalismo de fato.
A falsa promessa de equidade algorítmica
O apagão no Brasil deveria servir de alerta mundial. Em tese, o Google Discover é uma vitrine “inteligente” — recomenda o que é relevante para cada usuário, conforme seus interesses. Mas na prática, essa personalização se baseia em interações passadas, perfis comportamentais e, claro, critérios de ranqueamento editorial que ninguém conhece.
É uma curadoria sem curador. E, como toda IA de alto impacto, ela aprende com o comportamento de consumo — inclusive o consumo enviesado, raso, sensacionalista. Como já analisei em “o algoritmo comeu a manchete”, o problema não está apenas em como a inteligência artificial entrega notícias, mas no que ela considera notícia em primeiro lugar.
Quando milhares de usuários clicam mais em listas e guias do que em reportagens, a IA não discute o mérito: ela prioriza o que performa. A consequência é fatal: o jornalismo perde espaço para o utilitarismo barato e o conteúdo evergreen artificial.
Um dos sobreviventes desse colapso é o Click Petróleo e Gás — que há tempos fala mais sobre celulares, empregos e “como fazer” do que sobre petróleo. Outros grandes portais mergulharam em nichos como “como plantar”, “como aplicar no Tesouro” ou “como preparar fertilizantes naturais”. O segredo? Conteúdo sem data de validade, despolitizado, com cara de tutorial. A IA gosta disso.
É um novo tipo de SEO: adaptável, despersonalizado, insípido. É o triunfo do conteúdo pelo conteúdo, da publicação como estratégia e não como propósito. E o que funciona para os sobreviventes, para o jornalismo real representa um esvaziamento profundo.
Por que isso importa tanto no Brasil?
Porque, ao contrário da Europa ou dos Estados Unidos, o Brasil é Android. Cerca de 80% dos celulares em uso rodam o sistema do Google, o que significa que o Discover está presente — e ativo — na tela de bloqueio de mais de 130 milhões de pessoas por dia. Isso é mais do que a tiragem de todas as mídias impressas, o alcance dos telejornais e a média de tráfego direto somados.
Ficar fora do Discover, no Brasil, é ser excluído de um país. A desindexação aqui não é um tropeço: é um colapso sistêmico. E o pior: ninguém responde por isso. Não há painel, canal de recurso, política de revisão. A plataforma decide. E o site morre.
A quem pertence o jornalismo digital?
A crise atual expõe o ponto cego do modelo atual: o conteúdo é produzido por jornalistas, mas sua distribuição pertence a terceiros. O Discover decidiu que o conteúdo dos outros é o que atrai os usuários, mas sem garantir reciprocidade.
É o mesmo modelo que quebrou redações no Canadá, na Austrália, e agora se repete aqui — com a diferença de que, no Brasil, não há regulação. Como mostrei na coluna sobre a pressão de veículos brasileiros ao Cade, já existem tentativas iniciais de reação institucional à concentração de poder do Google, mas nada que enfrente de verdade o núcleo algorítmico da crise.
Se um jornal impresso tivesse sua distribuição boicotada por distribuidoras, isso geraria CPI. No digital, quando um algoritmo corta o acesso de milhões, o assunto morre no Twitter.
Durante anos, muitos veículos priorizaram headlines “para Discover”, textos “otimizados” e produção em volume para ganhar visibilidade. Agora, quando o Discover os abandona, percebem: não têm lista de e-mails, não têm aplicativo próprio, não têm relacionamento com o leitor.
Fizeram jornalismo para algoritmo, e o algoritmo mudou de humor.
A imprensa precisa de retorno, sim. Precisa de audiência. Mas não pode existir como parasita de um sistema que não a respeita. Isso é o mesmo que construir uma casa em terreno alugado — e sem contrato.
E agora?
O Google sempre responde com o de sempre: “estamos melhorando o ambiente virtual“. Não oferece canal de recurso. Não há política de restauração, nem interface para diagnóstico. Os editores tentam de tudo: mudam títulos, migram para nichos, apagam conteúdo, contratam agências. E nada muda.
Enquanto isso, a audiência murcha, os anúncios caem, e os jornais vão sendo empurrados de volta à irrelevância — sem saber ao certo por que.
Se há algo a tirar disso tudo, é que o jornalismo brasileiro precisa sair do modelo de dependência algorítmica. Enquanto não houver transparência mínima sobre como o Discover opera, nenhum veículo deveria confiar seu futuro a essa roleta russa digital. A obsessão por pageviews precisa dar lugar a uma estratégia de presença: newsletter, podcast, aplicativo próprio, parcerias diretas com leitores.
Porque quando o feed te esquece, nem sempre é possível voltar.